Denunciados por mortes em incêndio na boate Kiss vão a júri popular

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu evidências de dolo eventual na conduta dos quatro denunciados pelas mortes ocorridas em 2013 no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (RS). Em julgamento que durou cerca de três horas, os ministros deram parcial provimento ao recurso especial do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP/RS) e da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).

Para o colegiado, há indicação de um consistente conjunto de indícios, suficientes para levar os réus a julgamento popular. A decisão da turma foi unânime. Acompanharam o voto do relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, a ministra Laurita Vaz e os ministros Nefi Cordeiro e Antonio Saldanha Palheiro.

Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, em decorrência de incêndio no interior da casa noturna, 242 pessoas morreram e outras 636 foram de alguma forma vitimadas. O fogo começou durante a apresentação de uma banda cujo vocalista usou um artefato pirotécnico, provocando o incêndio. As chamas se alastraram rapidamente, devido ao material inflamável usado no revestimento do estabelecimento, produzindo uma fumaça tóxica que tomou o ambiente.

Em julho de 2016, o juiz da 1ª Vara Criminal de Santa Maria pronunciou o vocalista, um funcionário da banda e dois sócios da boate pelos 242 homicídios duplamente qualificados e pela tentativa de, no mínimo, 636 homicídios duplamente qualificados.

Após recurso dos acusados, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) manteve o dolo eventual, mas excluiu as qualificadoras de motivo torpe (ganância) e emprego de meio cruel (fogo e asfixia). No entanto, no julgamento de embargos infringentes houve empate, o que favoreceu os réus com a desclassificação dos fatos para outros que não aqueles da competência do Tribunal do Júri. Dessa decisão, o MP/RS e a associação recorreram ao STJ.

Ciência do risco

O relator do recurso, ministro Rogerio Schietti Cruz, explicou que a decisão de pronúncia encerra a primeira etapa do procedimento dos crimes da competência do Tribunal do Júri e constitui juízo positivo de admissibilidade da acusação.

“Para permitir o julgamento do acusado por seu juiz natural, o Tribunal Popular, a lei processual penal exige tão somente que haja prova da existência do crime e indícios suficientes de sua autoria”, pontuou.  Nesse juízo inicial – ressaltou –, não há julgamento de mérito e não se afirma a responsabilidade penal do réu pronunciado. A competência para avaliar os fatos e julgar o acusado será do Tribunal do Júri.

Nesse sentido, o ministro observou que as instâncias anteriores apontaram diversos elementos “a evidenciar razoabilidade da ilação de que os acusados teriam agido com dolo eventual”. Para ele, os réus estavam cientes das condições do local, tendo a decisão de pronúncia indicado “fatores objetivos que permitem inferir que os recorridos estavam cientes desses riscos e das possíveis consequências que poderia causar o menor incidente decorrente do uso de fogo de artifício sabidamente impróprio para ambiente interno, acionado e direcionado a material altamente inflamável, a poucos centímetros de distância da chama”.

Existência de indícios

Para Schietti, a desclassificação feita pelo TJRS para outros delitos que não aqueles da competência do Tribunal do Júri, nesta etapa do processo, só poderia ocorrer quando o suporte fático fosse inquestionável quanto à ausência do elemento subjetivo autorizador do julgamento popular – o dolo.

Assim, o ministro afirmou que o empate na votação dos embargos infringentes não autoriza a aplicação do parágrafo 1° do artigo 615 do Código de Processo Penal (decisão mais favorável ao réu), uma vez que, nesse momento, não houve a desconstituição da análise feita pelo juiz da pronúncia e pelo acórdão proferido em sede de recurso estrito, que confirmou a submissão dos recorridos ao julgamento pelo tribunal do júri.

Ao citar precedentes do STJ, o relator também manteve a tipificação das condutas de homicídio tentado em relação às 636 pessoas sobreviventes, ao entendimento de que a jurisprudência dominante e a doutrina são no sentido de haver compatibilidade entre o dolo eventual e o homicídio tentado.

Qualificadoras

Por fim, o relator manteve o afastamento das qualificadoras imputadas na denúncia relativas ao motivo torpe (ganância por maiores lucros) e ao meio cruel (fogo e asfixia) pela ausência de circunstâncias concretas que revelem especial perversidade dos réus.

Além disso, Schietti ponderou que a afirmada ganância dos acusados – pela utilização, no revestimento interno do estabelecimento, de espuma inadequada, altamente tóxica e inflamável; a ausência de investimento em segurança contra incêndio; a busca de lucro com a superlotação, a aquisição de fogos de artifício mais baratos indicados para ambientes externos – e a ocorrência de fogo e asfixia foram consideradas na configuração do dolo eventual, e, se mantidos como qualificadores, poderiam configurar bis in idem (imputação dupla pelo mesmo fato).

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