Pioneiras na luta pelos direitos das mulheres se reúnem

Cuiabá foi palco de um encontro histórico de mulheres pioneiras na luta pela igualdade de gênero. Entre as quais, a desembargadora Shelma Lombardi de Kato e as primeiras delegadas especializadas de Defesa da Mulher, Rosemary Corrêa (de São Paulo) e Miedir Santana da Silva (de Cuiabá).
Juntas, essas mulheres, desbravadoras de postos de trabalho, até então ocupados por homens, comemoraram, com cerca de 800 outras pessoas, os 13 anos da implantação da Lei 11.340/06, conhecida por Lei Maria da Penha. O encontro ocorreu durante o Colóquio organizado pela Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Estado (Cemulher/TJMT).
“Este Estado foi um dos pioneiros na implantação da Lei Maria da Penha. Muito pelo esforço da desembargadora Shelma, a lei foi implantada aqui com 45 dias de sanção”, elogiou a biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, símbolo da luta das mulheres contra a violência doméstica que empresta o nome à lei e que abrilhantou o evento do Cemulher, em Cuiabá.
Shelma é desembargadora aposentada do TJ, foi a primeira mulher a ser aprovada no concurso da magistratura mato-grossense e fez história ao longo de toda a carreira, não só como a primeira juíza a enfrentar o quadro funcional exclusivamente masculino e a sociedade machista da época, em 1969, mas também como a primeira desembargadora do TJMT (1979), primeira presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso (1985-1988) e primeira e única mulher a presidir a Corte Estadual de Justiça até o momento atual (1991 – 1993).
“Todo mundo falava que mulher não dava para isso, que mulher era boa para esquentar umbigo no fogão e esfriar no tanque. O que uma mulher queria ser magistrada? Como uma mulher vai decidir sobre o destino, a vida das pessoas, a liberdade, a honra, o patrimônio? Isso é loucura. Em São Paulo, nem pensar, falavam que a magistratura era para homens, porque era coisa séria”, relembra a desembargadora aposentada, aos 80 anos de idade durante entrevista para a série “145 anos: o Judiciário é história” celebrado em maio deste ano. Veja matéria completa AQUI.
A magistrada também é conhecida pela militância no meio jurídico. Ajudou a fundar a Associação Nacional de Magistradas (ANM) e coordenou no Brasil o “Projeto da Jurisprudência da Igualdade”, de capacitação de magistrados em Direitos Humanos das Mulheres e das Crianças, através de Convênio firmado entre a ANM e o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), envolvendo cinco países latino-americanos. Foi designada pelo TJMT para presidir e promover as ações necessárias visando à aplicação da Lei Maria da Penha e incumbida de coordenar a implantação das Varas Especializadas de Violência Intrafamiliar e Doméstica Contra as Mulheres em Mato Grosso.
“Como todos sabemos, a luta contra a violência doméstica não e fácil. Mas não é possível que acreditemos que uma lei ou um decreto possa modificar uma cultura social má que durante séculos imperou, por isso a luta continua”, avalia a desembargadora aposentada. “Se ainda há violência contra mulher seria muito pior a violência sem a Lei Maria da Penha. Não podemos ser pessimista, mas não podemos ser otimistas demais de achar que a lei resolve”, aconselha.
Delegacias Especializadas – O evento contou com a presença das primeiras delegadas especializadas em Defesa da Mulher do Brasil e de Mato Grosso. Rosemary Corrêa, conhecida como Delegada Rose, se orgulha de ter sido a primeira titular da Delegacia Especializada de Defesa da Mulher do mundo.
A delegada aposentada comemora, além dos 13 anos da Lei Maria da Penha, os 34 anos da criação da primeira Delegacia Especializada de Defesa da Mulher (DDM), na cidade de São Paulo, pelo então governador Franco Montoro, em 1985. “Tinha 33 anos e já era delegada há 10 anos. Participei do movimento grupo de mulheres junto ao governador para que pudessemos instalar nossa delegacia das mulheres”, descreve. “Foi uma experiência impressionante. Mudou toda minha vida”, confessa.
Rosemary conta que sentou uma responsabilidade muito grande ao se deparar com uma fila diária de 500 mulheres aguardando por atendimento. “Tinham todos os tipos de lesões que você pode imaginar e depositavam na delegacia toda a confiança de que a partir dali começariam a sair da vida de violência”, revela.
A pioneira destaca que a DDM não foi um presente, e sim o resultado de muita luta das mulheres. “Inicialmente, sofremos muita resistência por parte da própria instituição policial que não entendia porque precisava ter uma delegacia especial para atendimento de mulheres. Sofremos, mas trabalhava tanto que não tivemos nem tempo de discutir”, diz. “Tivemos total apoio da imprensa e a medida que saiam notícias do que ocorria na delegacia, essa resistência foi baixando e a gente começou a contar com apoio dos colegas”, relata.
Para ela, a delegacia da mulher foi a primeira política institucional para mulher do país. “A partir dela foram surgindo outras políticas públicas, como trabalho com a assistente social, com psicóloga, primeiro abrigo para mulheres que não podiam voltar para casa, atendimento jurídico, que culminou com nossa grande vitória com a sanção da lei Maria da Penha, no ano de 2006”, avalia.
O pioneirismo em Mato Grosso ficou a cargo da delegada Miedir Santana da Silva, também no ano de 1985. Ela foi convidada pelo secretário de Segurança do Estado, Oscar Ribeiro Travassos, para assumir a titularidade da DDM de Cuiabá. “Entrei em contato com São Paulo, com o Conselho Feminino para saber o que pretendiam, o que iam fazer e comecei por instinto”, revela.
“Já no dia da inauguração da Delegacia, que era na feirinha da mandioca, tinha uma fila de mulheres com orelha descolada, pedaço de língua na mão, hematomas. Já tive naquele momento que tomar algumas providências”, contou.
Miedir revela que, nos meados dos anos 80, atuar na defesa das mulheres era muito difícil, sofreu muito preconceito. “Todos que entravam na minha sala era para simplesmente me testar. Alguns diziam: ‘Você que me mandou intimar. Além de mulher, negra?’ e queria sair da sala sem prestar o depoimento”, comenta.
Naquela época era a ‘lei do 38’ que valia, mas não sabia atirar. Então, tinha que ir trabalhar com um revólver sem bala. Quando os homens me confrontavam eu ameaçava: ‘senta aí, senão lhe passo fogo’, sem saber que nem bala tinha”, relembra.
“Graças a Deus as coisas mudaram”, agradece. “Fico emocionada ao ver a evolução que tivemos, mas temos muito a caminhar. O número de mortes de mulheres é muito alto. Acredito que com a patrulha Maria da Penha possa amenizar”, reflete. “Na minha época não tinha Lei Maria da Penha, nem casa de amparo para as vítimas de violência, eu mesma que pegava o meu carro, e ia cedo na casa dos agressores, batia palma e perguntava para a vítima ‘ está tudo certo?’. Só para o agressor saber que a mulher não estava só, que estávamos lado a lado e dando continuidade aos trabalhos da delegacia”, reforça.
Tanto a delegada aposentada de São Paulo quanto a de Mato Grosso estão aposentadas, mas dizem que a luta por igualdade não termina. “A violência contra mulher não acabou. Basta pegar as estatísticas. A gente precisa continuar lutando. Agora nos deparamos com feminicidios dentro de casa, que é o ápice da violência doméstica e ocorre quando a mulher decide dar um basta”, reflete. “Encontros como este colóquio serve para um conhecer o trabalho que outro está realizando e levando para o seu estado”, imagina a delegada Rose.
“Atualmente, trabalho no grupo Socorristas de Maria, sou vice-presidente da associação dos moradores da Morada do Ouro e tudo que posso fazer faço. Para mudar a cultura preserve porque não podemos descansar”, confirma Miedir.

Veja Mais

Deixe seu Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *