Jovem que escapou de acidente da Varig cogitou ser comissária

A enfermeira Ariadna da Silva Ramos se acostumou a contar uma história da qual sequer se lembra. Ela era um bebê de cinco meses quando sobreviveu ilesa à tragédia do voo Varig 254, que fez um pouso forçado na Amazônia há 30 anos e deixou 12 mortos – 42 pessoas sobreviveram.

Atualmente morando em Imperatriz (MA), Ariadna cresceu ouvindo os relatos do acidente que sobreviveu – o avião perdido sobre a floresta, o pouso forçado na mata densa, a espera na selva e o resgate. Mesmo assim, chegou a pensar em seguir a carreira de comissária de bordo, mas decidiu, no fim, seguir carreira na área de saúde.

“Eu gosto de avião, não tenho trauma nenhum. Quando eu era criança, eu via as aeromoças e achava todas bonitas e elegantes”, conta Ariadna.

Realmente, Ariadna não tem por que temer viagens de avião. O desastre do Varig 254 não ocorreu por falha técnica no Boeing 737-200 da extinta companhia, mas porque os pilotos erraram ao marcar a rota no sistema de navegação da aeronave – algo quase impossível de acontecer com os equipamentos atuais, com GPS – induzidos por uma recente mudança de procedimento na empresa.

Com o rumo errado, o voo – que deveria seguir de Marabá a Belém, ambas no Pará – foi parar no Mato Grosso, e, sem combustível, precisou pousar no meio da floresta (leia mais sobre o acidente no fim da reportagem).

Mesmo sem se lembrar do que aconteceu naquele 3 de setembro de 1989, a jovem se tornou conhecida pelos entusiastas da aviação. Todos querem saber mais como Ariadna, ainda um bebê, sobreviveu sem um arranhão ao desastre do Varig 254.

“Uma vez, eu conversava com um paciente e ele falou sobre o caso. Eu, então, disse que sobrevivi ao acidente. Na hora, ele quis tirar foto e deixei”, diverte-se a enfermeira.

Militares resgatam Ariadna Ramos e a mãe, Regina Célia, do local da queda do Varig 254, em São José do Xingu (MT).

Se Ariadna era muito pequena para se lembrar do Varig 254, a mãe dela, Regina Célia da Silva, não se esquece dos detalhes. As duas estavam de mudança, às pressas, de Imperatriz para Macapá (AP), onde morava o pai da bebê, que trabalhava com garimpo. Junto, estava Afonso, um irmão de Regina.

Era comum em 1989 que um passageiro fizesse diversas escalas ou conexões até chegar ao destino. O voo entre Marabá e Belém – justamente o Varig 254 – era só uma das pernas do périplo da família, que mal teve tempo de se preparar.

Regina, que hoje trabalha como cabeleireira, relembra que estava em uma praia à margem do rio Tocantins, em Imperatriz, quando o irmão avisou da viagem. Ela correu para buscar as cinco malas já prontas e o cãozinho Let – um pinscher caramelo que também iria viajar.

“Saí que nem uma louca da praia para viajar. Nem consegui colocar uma roupa na Ariadna”, conta Regina.

Era para ser um voo curto, de menos de uma hora. Quando a tripulação anunciou o pouso, Afonso estranhou não ter visto as luzes de Belém pelas janelas do Boeing. “Aqui não é Belém, não”, disse, segundo Regina. “O avião ficou rodando, rodando, e nós só podíamos esperar.”

Mais de duas horas depois, Regina e o irmão souberam que o avião não mais pousaria em Belém. “A comissária admitiu que a gente estava perdido e que os pilotos procuravam algum aeroporto para pousar”, conta.

“Depois, a comissária pediu para a gente esvaziar os bolsos, tirar sandália, botar agasalho e proteger o bebê do impacto porque a gente ia pousar na mata.”

Regina segurou Ariadna bem rente ao corpo e se preparou para o impacto. Com a forte desaceleração e o choque com as árvores, as poltronas do Boeing 737-200 se desprenderam do piso e foram lançadas com violência para a parte da frente da aeronave.

A família, porém, teve sorte: a segunda fileira, onde estavam sentados, não foi atingida pelo amontoado de cadeiras, ferragens e passageiros arremessados com o impacto. Regina sofreu apenas um hematoma, e Afonso teve um corte leve na testa. Ariadna saiu ilesa – e continuou dormindo. “Eu estava calminha, calminha. Eu tinha que cuidar da minha filha, não é mesmo?”, relembra Regina.

Mesmo diante do cenário de destruição e tristeza – os corpos das vítimas permaneceram no avião até o resgate –, a família não se desestabilizou. Regina ajudou a cozinhar os feijões levados nas bagagens de um dos passageiros, enquanto cuidava de Ariadna.

Demorou 44 horas até que os passageiros fossem encontrados no meio da mata. O irmão de Regina, inclusive, participou do grupo que entrou por dentro da floresta até que encontrassem uma fazenda no município de São José do Xingu (MT). De lá, esses sobreviventes conseguiram entrar em contato com as Forças Armadas, que deslocaram três aeronaves ao acampamento.

Regina conta que não temeu ficar presa na floresta. “A gente sabia que ia ser resgatado, em algum momento.”

Regina e Ariadna se reencontram com o cão Let, um pinscher caramelo, que sobreviveu à queda do Boeing 737-200 da Varig —

O pinscher caramelo Let, de 1 ano, viajou dentro de uma caixa de madeira no porão do Boeing 737-200, junto a toda a bagagem de mudança. Alguns pequenos móveis e eletrodomésticos de Regina, além de roupas, não resistiram ao impacto.

Foi uma surpresa quando a cabeleireira recebeu de volta o cachorro Let cinco dias depois do acidente. A caixa de madeira suportou o impacto da queda, e o animal escapou ileso – mesmo sem água e comida.

“As coisas que quebraram eu nem recebi. Aí, no quinto dia depois do acidente, levaram o Let de volta para mim”, relata.

O cachorrinho sobrevivente, porém, não ficou muito mais tempo com a família de Regina. Não deu nem tempo de Ariadna guardar alguma lembrança dele. Apenas dois anos depois do acidente, duas mulheres roubaram Let de uma casa em Salvador onde a família passava férias.

Regina acredita que, como a história do Varig 254 ficou conhecida, a vizinhança quis aplicar um golpe na família.”Elas ainda ficaram telefonando, diziam que iriam devolver. Mas nunca mais eu vi o Let.”

Um inquérito da Aeronáutica concluiu que o comandante, Cézar Augusto Pádula Garcez, e o copiloto, Nilson de Souza Zille, inseriram rota no sistema de navegação da aeronave diferente da designada para o trecho Marabá-Belém: 270 em vez de 027.

A Varig havia mudado a maneira como os pilotos inseriam os dados de navegação – em vez dos três dígitos, o novo sistema impunha a necessidade de incluir quatro dígitos. A norma foi revogada pela companhia depois do acidente.

Com o rumo errado, o Boeing se distanciou – e muito – da rota original. Os pilotos chegaram a se aproximar para o pouso pensando se tratar de Belém, mas o avião estava bem distante. Assim, o avião ficou sem combustível, o que obrigou o pouso forçado no meio da floresta, no município de São José do Xingu (MT) – cerca de 1,1 mil quilômetros distante da capital paraense.

Zille e Garcez foram condenados a quatro anos de prisão porque, no entendimento da Justiça, eles agiram com negligência. A pena foi convertida em multa e punição alternativa.

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