Leis aprovadas em SP levam Itamaraty a alertar mal-estar com o Azerbaijão

Dois municípios do estado de São Paulo receberam alertas do Ministério das Relações Exteriores por, de certa forma, se envolverem numa disputa territorial que ocorre a quase 13 mil quilômetros do Brasil. Mairiporã e Pilar do Sul se declararam cidades-irmãs de duas localidades na República de Nagorno-Karabakh – um território de maioria armênia dentro do Azerbaijão.

O problema é que o Brasil não reconhece a República de Nagorno-Karabakh como independente. Aliás, nenhum país integrante da Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece. Nem mesmo a Armênia (leia mais sobre o assunto mais abaixo).

Segundo o Itamaraty, o governo do Azerbaijão, por meio de sua embaixada, pediu explicações ao Brasil. As duas leis municipais aprovadas mencionam nominalmente os termos “Armênia Eterna” e “autodeclarada República de Nagorno-Karabakh”. Para o Ministério de Relações Exteriores, elas poderiam afetar as boas relações com o Azerbaijão.

Veja quais são os municípios em questão:

  • Mairiporã – irmã de Stepanakert (ou Khankendi, na língua azeri ou azerbaijana);
  • Pilar do Sul – irmão de Shushi (ou Shusha, em azeri).

De quem foi a ideia?

A ideia de criar essas irmandades entre cidades partiu do radialista e comerciante paulistano Sarkis Karamekian, 51 anos, descendente de armênios e líder da associação Juventude Armênia. Ele e o grupo viajaram pelas cidades paulistanas com apresentações de dança e exposições da cultura do país situado no Cáucaso.

“O objetivo era estreitar a relação entre as cidades por experiências culturais, de educação e esporte”, contou ao G1. Estima-se que 50 mil descendentes de armênios vivam no Brasil, a maioria no estado de São Paulo.

Karamekian defende que o território de Nagorno-Karabakh – também conhecido como Artsakh – seja internacionalmente reconhecido como armênio. “Mas queremos estabelecer uma relação amigável com o Azerbaijão”, ressaltou.

“A gente entende [o pedido] e tem enorme respeito pelo Itamaraty. Em nenhum momento quisemos criar um mal-estar”, disse Karamekian.

Esta não é a primeira vez que o “irmanamento” de municípios brasileiros com Nagorno-Karabakh recebe questionamentos do Itamaraty. Em 2017, o vereador Gilberto Natalini (PV) retirou um projeto feito por ele mesmo para tornar a cidade de São Paulo irmã de Stepanakert.

Natalini disse que, na ocasião, recebeu convite para conhecer a Armênia e visitou também Nagorno-Karabakh.

“Eu vi que ali era Armênia. A população, a cultura, a igreja eram armênias”, justificou Natalini.

À época, segundo o Itamaraty, o governo do Azerbaijão “manifestou estranheza e decepção” com a proposta apresentada por Natalini.

“Para não criar conflito, resolvi retirar provisoriamente o projeto de lei. Mas acho justo que São Paulo seja irmã da cidade armênia”, defendeu.

O que diz cada lado

  • Ministério das Relações Exteriores

O Itamaraty informou que considera as iniciativas das cidades “bem intencionadas”. No entanto, segundo o ministério, os projetos “não favorecem a construção de ambiente propício para a solução do conflito”.

Além disso, o Itamaraty reiterou que o Brasil “defende a solução pacífica do conflito por meio de negociações” e a “plena implementação das quatro resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre o Nagorno-Karabakh, que reafirmam a soberania e a integridade territorial do Azerbaijão e de todos os outros Estados da região, bem como a inviolabilidade das fronteiras internacionais e a inadmissibilidade do uso da força para a aquisição de território”.

  • Embaixada do Azerbaijão

G1 entrou em contato com a embaixada do Azerbaijão em Brasília. A equipe da representação do país, porém, respondeu que não havia uma resposta ou comentário sobre o caso até a publicação desta reportagem.

  • Mairiporã (SP)

A assessoria de imprensa do prefeito Antonio Aiacyda (PSDB) disse ao G1 que houve um erro por parte da equipe, que não o informou sobre o conflito envolvendo Nagorno-Karabakh. Segundo a Prefeitura, um vereador da cidade editou o projeto de lei para dar “boas-vindas” aos representantes armênios.

G1 procurou o vereador Valdeci América (PV), autor do projeto de lei que tornou Mairiporã irmã de Stepanakert, mas o parlamentar não respondeu.

A expectativa da Prefeitura é que o projeto de revogação da lei vá a plenário a partir da semana que vem, quando a Câmara Municipal voltar do recesso parlamentar.

  • Pilar do Sul (SP)

A assessoria jurídica da Câmara Municipal de Pilar do Sul afirmou que enviou ao Itamaraty uma série de indagações sobre o pedido. Isso porque, segundo os assessores, “a posição do Governo pode ter mudado depois da mudança na Presidência”.

O Ministério de Relações Exteriores, porém, respondeu ao G1: “O posicionamento do Governo Federal não mudou”.

Na mesma linha da Câmara Municipal, o autor da lei que declara Pilar do Sul irmã de Shushi, vereador Marcos Fábio dos Santos (PDT), disse ainda defender a proposta. “Tem que olhar o lado da opressão do povo [armênio]”, afirmou.

“Estou disposto a conversar. A lei que fiz não é para mudar o posicionamento do Brasil, e sim, da cidade”, justificou o vereador.

 

O que é Nagorno-Karabakh?

A autodeclarada República de Nagorno-Karabakh abriga 150 mil pessoas em um território encravado no Azerbaijão – uma ex-república da antiga União Soviética no Cáucaso, na fronteira entre Ásia e Europa. Dessa população, segundo dados apresentados pelo governo armênio, 95% tem origem armênia.

O conflito na região data do início da União Soviética, na década de 1920, quando Moscou passou a governar os países do Cáucaso. Jeffrey Eden, pesquisador da Universidade Harvard (EUA), explicou ao G1 que, durante quase todo o século passado, Nagorno-Karabakh fez parte da então República Socialista Soviética do Azerbaijão.

“Muita gente no Azerbaijão enxerga Nagorno-Karabakh como parte histórica da pátria azeri – assim como vários armênios veem da mesma forma”, ilustrou Eden.

Em 1988, três anos antes da dissolução da União Soviética, eclodiu uma guerra entre azeris e armênios na disputa por Nagorno-Karabakh. O conflito só terminou em 1993, com um cessar-fogo assinado no ano seguinte e mediado, principalmente, pela Rússia. Estima-se que mais de 30 mil pessoas morreram no confronto.

Mais de duas décadas depois, em 2016, um conflito armado que durou quatro dias matou dezenas de pessoas, entre civis e militares.

A disputa ainda está longe de uma solução. Segundo Eden, dificilmente algum país vai oficialmente reconhecer Nagorno-Karabakh ou interferir de forma direta na disputa – o que explica o pedido do Itamaraty. Veja por quê:

  • A Rússia ainda mantém fortes laços econômicos e estratégicos com os dois países. Tomar um lado levaria o Kremlin a se indispor com o outro;
  • Caso a República da Armênia reconheça a independência de Nagorno-Karabakh, o governo do Azerbaijão poderia se sentir provocado, levando a um conflito;
  • Apesar do cessar-fogo e de um encontro recente entre ministros de Relações Exteriores dos dois países, há relatos de violações da trégua na região e provocações diplomáticas entre azeris e armênios.
 

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