A Netflix é uma empresa de números grandiosos. Com 25 anos de história, ela está presente em mais de 190 países e, segundo seu último relatório financeiro, conta com nada menos do que 223 milhões de assinantes. Um cenário improvável de se imaginar no começo de sua história, tendo em vista que a plataforma de streaming tinha um modelo de negócios muito diferente nos seus primeiros anos de vida.
No final dos anos 90, quando a Blockbuster dominava o ramo de entretenimento doméstico, a Netflix surgiu como um curioso serviço online de aluguel e compra de DVDs.
Em um mundo dominado por locadoras presenciais, a empresa decidiu fazer diferente e, com dois anos de mercado, passou a oferecer um serviço inédito, em que seus clientes montavam uma lista online dos filmes que queriam assistir e recebiam os títulos por correio. Mediante uma assinatura mensal, o cliente podia ficar com o título por quanto tempo quisesse, precisando apenas devolvê-lo quando desejasse receber outro filme.
Para que os negócios decolassem, a empresa se preocupou em oferecer um catálogo robusto (eram 925 títulos, quase o número total de filmes lançados em DVDs na época) e abolir qualquer tipo de cobrança de multa. Afinal, esse era um dos motivos que levou Reed Hastings, atual CEO da companhia, a co-criar a Netflix, já que o empresário era um cliente da Blockbuster descontente com seu sistema de devoluções e penalidades.
Com a boa recepção do serviço e a popularização do DVD, a empresa gradualmente cresceu. E, em 2001, chegou a marca de 400 mil assinantes, mantendo um crescimento sólido.
A grande virada, no entanto, veio em 2007, quando em paralelo ao seu serviço de locação, a Netflix decidiu lançar uma plataforma de streaming de filmes e séries. Inicialmente operando apenas nos EUA, ela tinha um cenário propício para se desenvolver, tendo em vista que 70% das pessoas do país com acesso à internet em casa já contavam com conexão de banda larga (dados coletados entre fevereiro e março de 2007 pela Pew Research Center).
O castelo de cartas da Netflix
Em uma época em que o conceito de plataformas de streaming ainda estava nascendo, a Netflix ajudou a desbravar caminhos para quem estava chegando. Prova disso é que a empresa foi uma das primeiras a entender que as plataformas podiam deixar de ser meros repositórios de títulos para passarem a ter seu próprio conteúdo original.
“Eles tiveram um ótimo timing de marketing [para se lançar no mercado], mas isso não garante o vencedor. A Apple foi a primeira a lançar mouse e quase faliu. É uma junção de fatores. O primeiro é, sim, com certeza ser pioneira. Mas acho que eles conseguiram tomar uma dimensão ainda maior quando começaram a lançar as séries originais”, afirma Marcell Almeida, CEO da PM3, escola de cursos em Product Manager.
O primeiro grande sucesso aconteceu com House of Cards, série de seis temporadas sobre o mundo da política. Apesar de não ser o primeiro produto original da plataforma, seu apelo junto ao público e suas inúmeras premiações abriram portas para que outros programas ganhassem sinal verde no streaming, como foi o caso de Orange Is The New Black e Stranger Things.
Nessa época, a plataforma já havia expandido seu negócio para outros países, chegando em 2010 ao Canadá, em 2011 nos mercados da América Latina e, em 2012, na Europa (Reino Unido, Irlanda, Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia).
Começava a dominação mundial do streaming, que não apenas havia ultrapassado a Blockbuster (vendida em 2011, após declarar falência), como também havia criado uma nova forma de se consumir entretenimento dentro de casa.
A Netflix tinha mudado as regras do jogo e, agora, com suas próprias produções, já começava a ser vista pelo mercado como uma concorrente. É o que explica Márcio Rodrigo Ribeiro, professor do curso de Cinema e Audiovisual da ESPM.
“Em um primeiro momento, como esse tipo de streaming era uma novidade da Netflix, outras grandes majors de Hollywood – como Disney, Sony, Universal e Paramount – aceitaram participar desse negócio porque era mais uma janela para explorar comercialmente os seus acervos. O modelo de negócios, porém, se mostrou um sucesso e, obviamente, estimulou com que essas empresas criassem gradativamente as suas plataformas de streaming por assinatura”.
De 3% a Dark: a Netflix abraça o mundo
Conforme os anos passavam e a empresa se consolidava na indústria, a Netflix passou a apostar cada vez mais na internacionalização de seu conteúdo, investindo em títulos originais locais.
Assim como havia feito em seus primórdios, quando disponibilizou quase todos os DVDs existentes para locação, a companhia sabia o quão importante era ter um catálogo extenso de produções, além de conteúdos que pudessem conversar mais diretamente com seu público.
“A Netflix descobriu que seus assinantes estavam interessados em outros tipos de conteúdos além do norte-americano tradicional. E, ao mesmo tempo em que ela precisava fazer parceria com esses mercados para produzir mais conteúdo, ela também começou a acionar produtores em várias partes do mundo”, analisa, Márcio.
Como resultado dessas operações, em 2016, o Brasil ganhou a sua primeira série nacional do streaming, 3%, e outras produções locais começaram a chegar no catálogo da plataforma, como a espanhola As Telefonistas e a produção alemã Dark.
Nessa época, a Netflix já era conhecida por disponibilizar os episódios de suas temporadas todos de uma vez, usando o modelo de maratona (ou binge watching, em inglês) como uma de suas principais publicidades. O diferencial de entregar o conteúdo completo, de maneira que o usuário pudesse assistir tudo na sequência, era um fator que ajudava muito em sua popularização.
A cultura da “liberdade com responsabilidade”
Além de todos esses fatores, havia ainda uma outra característica que tornava a Netflix uma empresa de destaque na indústria. Para além das produções que veiculava ou produzia, a plataforma passou a ser conhecida pela sua cultura corporativa, que seguia alguns lemas bastante incomuns para o mercado.
Entre eles estavam o desenvolvimento da densidade de talentos – responsável pela empresa apostar em times menores, mas apenas com feras do mercado –; o estímulo a feedbacks constantes; e a eliminação de processos de aprovação, que permitiam, inclusive, que seus funcionários tirassem férias quantas vezes quisessem ao ano.
Uma política que a Netflix sempre destacou como um de seus maiores trunfos e que tinha um quê de utópico na forma como era vendida à indústria.
“Na Netflix, é diferente. Vivemos em um jardim privativo de excelência onde todos são profissionais com alto desempenho”, escreveu Matt Thunell, vice-presidente de séries originais da Netflix, em trecho do livro ‘A Regra é Não Ter Regras: A Netflix e a Cultura da Reinvenção’. “Você participa das reuniões, e é como se o talento e a capacidade cerebral da sala fossem capazes de gerar eletricidade para o escritório. As pessoas desafiam umas às outras, argumentando entre si, e cada uma delas é quase mais inteligente do que o Stephen Hawking”.
A liberdade dada aos funcionários e a transparência com que a empresa lidava com questões internas eram diferenciais muito exaltados no Vale do Silício.
E a verdade é que, para quem olhasse de fora, com tantos resultados positivos e um time altamente criativo, a impressão que dava é de que nada poderia parar a Netflix.
Round one, fight! Começa a guerra dos streamings
Ainda que algumas plataformas de streaming já existissem no final dos anos 2000, foi só na segunda metade dos anos 2010 que os serviços do gênero começaram a ganhar tração e desenvolver de fato um cenário competitivo.
Players do mercado de tecnologia e de entretenimento abraçaram o streaming como um novo braço de suas empresas e, quase que da noite para o dia, plataformas como Amazon Prime Video, HBO Max, Disney+, Paramount+ e Apple TV+ estavam dentro das casas dos brasileiros – e de outros milhares de lares ao redor do mundo.
Um crescimento que, especialmente em nosso país, ganhou ainda mais força durante a pandemia do coronavírus, quando 73% dos usuários de internet afirmaram terem aumentado o seu consumo de streaming de vídeo, devido ao período de isolamento social (dados do Kantar Ibope Media).
Era a primeira vez, desde o lançamento de sua plataforma de streaming, que a Netflix via uma concorrência poderosa se estabelecer no mercado. E, vale dizer, numerosa também, já que plataformas dos mais variados modelos, catálogos e preços começaram a surgir.
Segundo o professor Márcio, apesar de muitos serviços de streaming chegarem “atrasados” na corrida por audiência, havia uma vantagem incontestável dessas plataformas em relação aos serviços como a Netflix.
“As grandes majors, quando criam suas plataformas de streaming por SVOD, partem muito na frente da Netflix porque têm conteúdos produzidos que elas podem explorar no catálogo há praticamente um século – o que é o caso da Disney, o caso da WarnerMedia, e [em menor escala], o caso, no Brasil, da própria Globo”, afirma.
Vale lembrar também que, ao chegarem no mercado, muitas dessas plataformas retiraram títulos importantes do catálogo da Netflix que eram de sua propriedade, os incorporando ao seu próprio serviço de assinatura e tornando a competitividade ainda mais acirrada.
Isso significava que uma guerra de streamings havia começado e que não havia nada de silencioso na forma como as empresas estavam se posicionando. Além de um investimento pesado em publicidade, algumas delas se juntaram para oferecer combos para os clientes e outras decidiram oferecer promoções agressivas, que ajudavam a criar e fidelizar uma base de usuários.
A concorrência era alta e quem não se ajustasse às diretrizes do mercado, fosse oferecendo valores mais baixos ou um catálogo que realmente prendesse o assinante, muito provavelmente não conseguiria sobreviver.
A crise bate à porta
A princípio, a Netflix teve dificuldades em lidar com a nova configuração da indústria. O cenário atípico fez com que, em maio de 2022, após dez anos de crescimento constante, a empresa reportasse uma queda de 200 mil assinantes.
No trimestre seguinte, a crise atingiu seu ápice, e ao todo foram quase 1 milhão de assinantes que cancelaram suas contas da plataforma. Um número grandioso, mas que diante de projeções ainda piores, mostrava que a Netflix já estava correndo atrás do prejuízo.
Era o momento de colocar a cabeça no lugar e pensar o que poderia ser feito para continuar a crescer. Afinal, a empresa ainda era uma das plataformas mais populares do mundo e já com bons anos de estrada, havia conseguido criar um senso de comunidade ao seu redor.
Cercada por fãs fervorosos, ela era famosa justamente por ter uma relação direta com seus usuários, usando uma linguagem engraçada nas redes sociais e realizando eventos pensados especificamente no seu público.
Ainda que existissem caminhos prováveis para essa recuperação, a posição da Netflix no mercado fazia que com essas estratégias não fossem as mais indicadas para prosseguir, como explica Marcell.
“Mesmo que eles baixassem o preço, seria ainda pior, porque eles iriam parar de ter fluxo de caixa e os competidores iriam baixar ainda mais o preço. Não iria ser saudável. A mesma coisa para o combo. Por que eles, que já são os dominantes e os maiores, vão fazer combos com os concorrentes? Eles iriam abrir mais portas para as outras empresas”, opina.
O projeto da Netflix, portanto, mirou em outros tipos de mudanças, começando por introduzir um novo plano de assinatura, mais barato e com anúncios, e pela decisão de taxar contas compartilhadas, cobrando uma tarifa de assinantes que dividissem sua conta com pessoas de fora da residência.
“Acho que é uma estratégia inteligente [o plano com publicidade] para conseguir pegar esse público-alvo que está a fim de pagar algo mais barato e talvez nunca tenha assinado a Netflix. É uma forma de bloquear a entrada desses outros [concorrentes] ou de, pelo menos, usando o termo share of wallet, compartilhar a receita da carteira desse público”, comenta Marcell.
Nem tudo ainda eram flores na Netflix, inclusive com demissões em massa acontecendo e relatos de funcionários denunciando a falta de comprometimento da empresa com sua cultura empresarial, tão logo a crise aconteceu.
Mas, aos poucos, a empresa parecia entender aonde precisava concentrar seus esforços, conseguindo recuperar assinantes no terceiro trimestre de 2022 e ampliando seus horizontes para um novo tipo de entretenimento.
A vez dos jogos mobile
Em novembro de 2021, a Netflix deu mais um importante passo em sua história. Após criar um sistema único de locação de DVDs e de se transformar em uma das mais importantes plataformas de streaming do planeta, a empresa decidiu que era hora de investir também em jogos eletrônicos.
Para isso, lançou a Netflix Games, um serviço gratuito para seus assinantes que dá acesso a diversos games mobile para jogarem quando e quantas vezes quiserem. Disponível para Android e iOS, o serviço chegou ao mercado inicialmente com quatro jogos e, atualmente, um ano depois do seu lançamento, já conta com 35 títulos.
Apesar de caminhar a passos lentos, com apenas 1% da base de assinantes da empresa o utilizando diariamente, a Netflix Games parece estar disposta a se firmar seriamente nesse mercado de entretenimento. Tanto que vem investindo mensalmente em novos títulos para sua coleção e conseguido arrematar jogos de peso, como é o caso dos games Oxenfree e Spiritfarer.
“Já estávamos desenvolvendo uma versão mobile do Spiritfarer com nossos parceiros Playdigious quando as discussões com a Netflix começaram”, afirma Rodrigue Duperron, Diretor de Marketing e Publicação da Thunder Lotus Games. “Esta é a primeira incursão da Thunder Lotus em jogos para celular, então a parceria com a Netflix foi vista como uma forma promissora de garantir visibilidade e retorno financeiro no competitivo mercado de jogos para celular”.
Com ganhos para ambos os lados, a parceria serve também como forma de divulgação para os estúdios, que agora têm um público imenso e que não necessariamente já fazia parte da sua base de fãs, descobrindo a obra.
“Queríamos trazer o Spiritfarer para dispositivos móveis para que os fãs novos e existentes pudessem experimentar o jogo nesse novo contexto. Acreditamos que estar na Netflix amplifica isso potencialmente, pois abre jogos para públicos que podem não jogar no PC/console – ou mesmo aqueles que normalmente não jogam no celular, mas são tentados pelo interessante modelo de negócios da Netflix de jogos gratuitos para jogar com sua assinatura”, diz Rodrigue.
Para o futuro, ao que parece, a Netflix pretende conduzir seu negócio de jogos eletrônicos de maneira parecida ao que fez com seus filmes e séries: após construir seu próprio estúdio de jogos na Finlândia, deve em breve lançar títulos originais, desenvolvidos diretamente pela empresa.
Já na sua plataforma principal, apesar da recente crise, as perspectivas são animadoras e a companhia acredita que continuará a ganhar mais assinantes. Além, é claro, de lançar cada vez mais filmes e séries de sucesso.
Do lado de cá, nos resta esperar pelos desdobramentos dessa história e, quem sabe, acompanhar os próximos 25 anos da Netflix.
Fonte: IG TECNOLOGIA