Entre os 17 capítulos do acordo de livre-comércio entre a União Europeia e o Mercosul, fechado em junho, o que teve mais repercussão até o momento não trata de negócios ou aduanas, mas de desenvolvimento sustentável. Ele foi usado por países europeus para pressionar o Brasil a adotar políticas efetivas contra o desmatamento e queimadas ilegais na Amazônia.
As regras ambientais do acordo foram citadas pela ministra da Agricultura da Alemanha, Julia Klöckner – que afirmou que “o Brasil se comprometeu com o manejo florestal sustentável” e que não assistiria ao descumprimento disso “passivamente” – e pelo primeiro-ministro da Irlanda, Leo Varadkar, que afirmou que seu país votaria contra o acordo se o Brasil não honrasse seus compromissos. O presidente da França, Emmanuel Macron, fez declarações no mesmo sentido.
O capítulo sobre desenvolvimento sustentável do acordo UE-Mercosul estabelece, por exemplo, que os países não podem enfraquecer seus níveis de proteção ambiental, revogar leis ambientais ou deixar de aplicar suas normas de forma reiterada, por ação ou omissão, com o objetivo de estimular o comércio e investimentos.
Se um país intencionalmente deixar de mobilizar brigadas de combate a incêndio ou equipes de repressão a desmatamento ilegal para estimular a economia de uma região, por exemplo, poderia ser enquadrado nessa regra.
O texto também estabelece que os países reconhecem a importância do manejo sustentável de florestas e devem implementar medidas para combater a retirada ilegal de madeira e seu comércio. Além disso, o texto reforça que todos os governos devem implementar o Acordo de Paris, que estipula metas de redução de emissão de gases do efeito estufa.
O acordo ainda precisa ser ratificado pelo Parlamento Europeu e pelos países-membros tanto do bloco europeu quanto do sul-americano para entrar em vigor.
Comércio ou meio ambiente?
O acordo entre a União Europeia e o Mercosul confirma uma tendência de inserir nesses textos a premissa de que o aumento do comércio não deve ocorrer à custa do meio ambiente, segundo Rabih Nasser, professor de direito do comércio internacional na FGV Direito SP.
Todos os acordos comerciais recentes da União Europeia incluem um capítulo sobre desenvolvimento sustentável, com regras sobre meio ambiente e condições de trabalho. O primeiro desse tipo foi o acordo com a Coreia do Sul, em vigor desde 2011.
A decisão de o Brasil assinar, por meio do Mercosul, o acordo marcou uma guinada na política comercial do país, segundo Nasser.
“O Brasil tradicionalmente tinha uma posição defensiva sobre esse tema, na Organização Mundial do Comércio era contrário a incorporar padrões ambientais e trabalhistas em acordos comerciais, para evitar que fossem usados para impor barreiras”, afirma. “O acordo com a União Europeia reconhece a ligação entre os dois temas.”
O advogado Werner Grau, sócio do escritório Pinheiro Neto e especialista em direito ambiental, ressalva que a essência do acordo segue sendo econômica.
“É um acordo comercial, mas um país pode dizer que vai fazer comércio com o outro, de forma benéfica aos dois, desde que determinadas regras sejam cumpridas”, diz.
Como funciona na prática
A aplicação das regras ambientais se dá por meio de negociação e pressão, pois nenhum bloco ou país pode impor a outro a adoção de uma determinada lei ou de uma política pública.
O próprio capítulo sobre desenvolvimento sustentável estabelece um mecanismo de solução de conflitos. Se um bloco entender que algum país não está cumprindo seus compromissos, primeiro ele dá início a consultas formais para obter detalhes e tentar chegar a uma solução negociada. Se não houver acordo, é criado um painel com três especialistas independentes, que analisam se o país ou bloco violou alguma regra. Com base nas conclusões do painel, o bloco então decide como agir – por exemplo, impondo barreiras ao comércio a quem desrespeitou normas.
Nasser afirma que os compromissos ambientais no acordo entre União Europeia e Mercosul não são “meramente retórica” e podem ser cobrados depois. Para ele, o fato de o capítulo estipular um mecanismo específico para solucionar conflitos é positivo e mostra o peso da questão.
Um exemplo de controvérsia sobre desenvolvimento sustentável ocorreu no acordo entre a União Europeia e a Coreia do Sul. Em dezembro de 2018, o bloco deu início a consultas para pressionar o país asiático a implementar compromissos sobre condições de trabalho, como respeito à livre associação de trabalhadores e ao direito à negociação coletiva. O governo sul-coreano anunciou que realizaria essas reformas no segundo semestre de 2019, mas em julho deste ano a União Europeia decidiu criar um painel de especialistas para examinar o tema.
Em relação ao acordo com o Mercosul, Grau diz haver “zonas cinzentas” no capítulo sobre desenvolvimento sustentável, e que ainda não está claro como algumas regras seriam aplicadas. Apesar de o texto estabelecer que países não podem deixar de aplicar suas leis ambientais para obter ganhos econômicos, o advogado aponta a dificuldade de provar que um governo tenha agido nesse sentido.
“As queimadas na Amazônia decorreram do enfraquecimento ou retirada de medidas? Não há prova disso. Há um grupo dizendo que vai acusar o Brasil de ecocídio [perante o Tribunal Penal Internacional]. Mas onde está o ato volitivo [de vontade] do Estado brasileiro? Não basta dizer que ‘porque teve a queimada, então não teve proteção'”, argumenta.
Repeito à soberania
A tentativa de um bloco influenciar como um país administra suas questões internas costuma despertar reações em defesa da soberania. Na crise das queimadas na Amazônia, o governo do presidente Jair Bolsonaro condicionou o recebimento de uma ajuda de 20 milhões de dólares do G7 à autonomia do Brasil para decidir como usar os recursos.
Para resguardar a soberania das partes, o acordo entre a União Europeia e o Mercosul reconhece que cada país tem direito de determinar as políticas e leis mais adequadas para sua realidade local. O texto também estipula que as partes devem buscar resolver diferenças por meio da cooperação e entendimento recíproco, e reconhece que os diferentes níveis de desenvolvimento dos países devem ser levados em conta.
Grau afirma ser esse um ponto central no acordo. “Temos que considerar o cenário das responsabilidades comuns e diferenciadas. O Brasil é o país que tem a maior área protegida no mundo. Do ponto de vista legal, ninguém protege áreas como o nosso país. Se há deficiências, temos que discutir mecanismos de auxílio internacional, preservada a nossa soberania”, diz.
Para Nasser, a mera existência das regras ambientais estimula os países a segui-las, para evitar prejuízos nos outros pontos do acordo, como maior acesso a mercados e investimentos.
“Ninguém vai ter o poder de entrar no país e obrigá-lo a aplicar sua política. Mas um país não pode ignorar as regras, porque senão corre risco de perder os benefícios do acordo, o mais relevante que o Mercosul já fez”, diz.
Segundo o especialista, a reação de países europeus à crise das queimadas e do desmatamento na Amazônia “já teve efeito aqui dentro e forçou uma certa mudança de postura do governo”.