Jaqueline Conceição trabalha desde que tinha 14 anos com o terceiro setor, direitos humanos e educação, três dos diversos pilares muito presentes na atuação dela como ativista. Aos 36, a antropóloga, psicanalista e mestre em educação com foco em história, política e sociedade está à frente do Coletivo Di Jejê , que busca educar empresas e pessoas, principalmente mulheres negras, sobre diversidade racial.
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O coletivo foi fundado em 2014 por Jaque, como é mais comumente chamada, e é considerado a única plataforma de conteúdos on demand com o objetivo de oferecer letramento racial. Essas aulas têm base no feminismo negro e na educação antirracista. Os conteúdos também abordam questões relacionadas à psicanálise, saúde mental, empreendedorismo étnico, formação feminista e de pensamento indígena.
Ao longo desses anos, quase 20 mil pessoas falantes de língua portuguesa (idioma em que os cursos estão disponíveis) passaram por diversos programas oferecidos pelo Di Jejê. O projeto tem parceria com 250 coletivos negros. Tanto os cursos online como as ações presenciais estão disponíveis em todo território brasileiro; isso sem contar os trabalhos de intercâmbio acadêmico feito com pesquisadoras negras e negros de outros 13 países, como Angola, Argentina, Portugal, Estados Unidos e Chile.
A abordagem é concentrada em esforços na troca de experiências e de conhecimentos capazes de afetar as pessoas. “A partir desse afetamento, queremos que elas possam produzir respostas, ideias e pensamentos que desloquem a narrativa sobre o lugar de latinos, negros, indígenas e brancos. Queremos promover conexão de pessoas interessadas na questão antirracista e alfabetizá-las da sua própria experiência com base na teoria e vida das mulheres negras”, conta a antropóloga ao iG Delas.
A motivação de Jaque para criar o Coletivo Di Jejê foi as opressões e violências do racismo institucional e do racismo recreativo pelas quais ela passou no ambiente acadêmico. Ela lembra que o período em que realizou o mestrado foi um dos difíceis.
“Vivenciei muitas situações de racismo, todos os tipos possíveis e imagináveis dele. E eu não tinha letramento racial. Embora soubesse desde pequena que eu sou negra, não tinha alfabetização racial para entender o que estava acontecendo”. Como resultado surgiu o coletivo, que ela define também como uma “questão de autocura e autocuidado”.
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Jaque avalia que o retorno de quem participa dos projetos é muito positivo. “Trabalhamos com uma técnica chamada de semeação, em que não nos preocupamos com o território, mas mais com a possibilidade de formar pessoas que podem atuar em diversas localidades. O resultado que a gente tem é a possibilidade de expansão. Nosso interesse é fazer pontos, conectar pessoas e manter esse conhecimento girando, além de construir narrativas, ideias e apontar caminhos”.
A antropóloga define o coletivo como um negócio social, sem investimentos. Todo dinheiro investido no coletivo é próprio, e o que é arrecadado com os cursos vendidos é direcionado a projetos desenvolvidos pelo Di Jejê.
“O que a gente faz não interessa aos investidores porque estamos propondo letramento racial da população para que ela entenda o que é racismo e parar de naturalizar a violência estrutural. Isso afeta diversos lugares da vida social que, talvez para pessoas que estão interessadas em gerar lucro financeiro, não exista uma preocupação”, pensa a ativista.
Por uma psicanálise que leve em conta o contexto racial
Jaque também fundou o Instituto Ioene de Estudos sobre psicanálise, raça e gênero; e o próprio Coletivo Di Jejê também dispõe de um curso de 60 horas com aprimoramento em feminismo negro e psicanálise – este último é desenvolvido na plataforma virtual Nkanda, a primeira a disponibilizar cursos sobre feminismo negro e mulheres negras.
A psicanálise é um ramo majoritariamente branco e que, Jaque avalia, precisa de muitas mudanças para conseguir abarcar as particularidades das pessoas negras. Esse também é um letramento que ela gostaria de desenvolver a partir do coletivo. “No Brasil, temos um número maior de profissionais negros, homens e mulheres. Mas o que a gente não tem é um repertório teórico e extenso para pensar psicanálise e racialidade. O que temos hoje é uma produção longa que não considera as questões raciais”, explica.
Ela afirma que é um equívoco que profissionais negros e negras pensem que, por viverem as particularidades da negritude, estão, necessariamente, aptos a se direcionarem especificamente para esse recorte. “A psicanálise não fala do repertório pessoal do psicanalista. É necessário ter uma teoria específica para dar repertório para psicanalistas atenderem pessoas racializadas”, reforça.
Ela exemplifica, por exemplo, que tratar da saúde mental de um homem negro nos Estados Unidos é diferente do que fazer esse mesmo tratamento com um homem branco, ou mesmo homens negros de outros territórios. Isso porque é preciso considerar marcadores de violências estruturais históricas aos quais esse grupo está inserido. No caso dos estadunidenses, são levadas em consideração a violência policial, a exposição precoce à sexualidade, a exposição ao consumo de drogas e as altas taxas de desemprego, por exemplo.
“Tudo isso vai levar a um quadro de sofrimento emocional que resulta em um processo muito específico de adoecimento mental. A gente pode pensar a mesma coisa no Brasil, que é o que pessoas como eu que vêm pautando. Sem um repertório teórico, isso nunca vai mudar”.
Jaque vê a psicanálise como uma ferramenta importante para pensar saídas para a questão racial no Brasil, bem como um mecanismo para responder o racismo. “Temos diversas instituições garantidas pela lei que vão falar da diversidade, mas não temos um lugar de fala na cultura. Não estamos falando, analisando e elaborando como deveríamos a questão racial nas relações sociais, nem a questão de gênero. A psicanálise pode ajudar a construir isso, mas acho que esse é um ponto pouco entendido”.
Essas mudanças relacionadas à racialidade na psicanálise estão acontecendo “com muita briga” e a passos lentos, justamente pelo fato de ser um campo predominantemente branco e masculino. “É um processo de afirmação, de pacto narcísico da branquitude, que quer manter as pessoas brancas nos lugares de poder. Tudo é feito à imagem semelhança do mundo branco. O que vejo é que muitos intelectuais que estão construindo discussões na psicanálise a partir de um lugar racial têm feito isso na teimosia”.
Afrolatinidade pautada nos Estados Unidos
Em julho deste ano, Jaque participou como ouvinte do primeiro encontro de Ativistas e Pesquisadores por Justiça e Equidade Racial, em Nova York, nos Estados Unidos. O evento fazia parte da convenção de justiça social UJC Summit, apoiado pela organização fundada pelo rapper Jay-Z, a Team Roc.
Problemas estruturais como o encarceramento em massa, a má saúde mental e física da população negra, o consumo excessivo de drogas recreativas e álcool e a baixa escolaridade desse grupo foram alguns dos temas debatidos. Ela conta que o evento tinha como intuito entender e pensar as questões de negros no país, bem como debater os caminhos possíveis em relação a esses tópicos e compreender de que que forma o recurso econômico circular pode chegar às comunidades negras e mais pobres.
“A questão racial nos Estados Unidos é diferente da do Brasil. Há uma forte questão econômica: lá, a população de negros é mais pobre do que os latinos, sendo que 90% vivem em situação de pobreza. Nos últimos anos houve um movimento intenso de inserção de negros no mercado de trabalho, mas os problemas estruturais são questões que nem o Estado e nem as políticas se preocupam”.
Jaque conta que não houve a possibilidade de discutir as questões da população brasileira ou mesmo de afro-latinos. Parte disso também está no fato de que a organização racial e de etnias nos Estados Unidos não é interseccional. “Por exemplo: eu me apresento como uma mulher negra mas, dentro do sistema de organização de políticas públicas, eu sou enquadrada no lugar de latina”, explica a ativista.
Essa ausência de debate sobre interseccionalidade motivou Jaque a idealizar um seminário sobre a população afro-latina, que deve acontecer em novembro deste ano. “Queremos fazer uma troca de ideias entre o que tem pensado de ativismo racial nos Estados Unidos e na América Latina, pensando na globalização e no papel do culto aos Estados Unidos no resto do mundo. Vamos fazer isso presencialmente para deslocar a ideia de que territórios e fronteiras são limitações”, conclui Jaque.
Fonte: IG Mulher