Mesmo com a aprovação do projeto de lei que derruba o chamado “rol taxativo” para a cobertura de planos de saúde (PL 2.033/2022) pelo Congresso Nacional, no dia 29 de agosto, ainda há uma disputa entre consumidores e operadoras. Pelo texto, os planos poderão ser obrigados a financiar tratamentos que não estiverem na lista mantida pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O Congresso foi na contramão da posição do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que entendia que os planos de saúde só precisavam cobrir procedimentos previstos expressamente no rol da ANS.
O Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde é a lista de consultas, exames, terapias e cirurgias que constitui a cobertura obrigatória para os planos de saúde regulamentados, contratados após 2 de janeiro de 1999. A lista possui mais de 3.300 itens que atendem a todas as doenças classificadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e pode ser consultada no site da ANS.
As operadoras de saúde, por sua vez, alegam que as consequências incluem diminuição da oferta de planos e sobrecarga do Sistema Único de Saúde. A advogada especialista em saúde, Bruna Manfrenatti explica como as operadoras podem ser afetas caso o PL seja sancionado.
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“Poderá afetar significativamente porquanto a obrigatoriedade do custeio de procedimentos fora do rol da ANS aumentará o risco do contrato. Isso vai acarretar a elevação dos preços das mensalidades, o que automaticamente poderá gerar a exclusão de um grupo de beneficiários do sistema de saúde suplementar, podendo causar a falência de planos de saúde de pequeno porte que possuem preços populares. Assim, vão sobrar apenas as gigantes do mercado, que possuem condições de assumir a incerteza dos impactos econômicos provocado pelo PL”.
Senadores se mobilizam contra decisão do STJ sobre planos de saúde Senadores se mobilizam contra decisão do STJ sobre planos de saúde No entanto, Bruna Manfrenatti defende a que a lei seja sancionada pelo Presidente da República. “Entendo que a decisão do Congresso foi bastante positiva para os consumidores, pois concederá maior segurança para os beneficiários de plano de saúde que não necessitarão movimentar a máquina do Judiciário para ter seu direito à saúde garantido”, aponta.
Para Rodrigo Araújo, também advogado especialista em saúde, a decisão do STJ contrariava os direitos dos consumidores, prejudicando aspectos de direitos e obrigações gerais das operadoras. “É inviável a manutenção do rol de procedimentos taxativo, instituído pelo STJ, pois cada caso que é submetido à análise do Poder Judiciário tem suas individualidades que o tornam, muitas vezes, único”, explica.
Araújo aponta ainda que mesmo as exceções previstas pelo STJ à regra ainda são insuficientes para garantir o direito dos usuários dos planos de saúde. “Mudar a decisão do STJ por meio do próprio Poder Judiciário levaria a uma discussão muito mais longa e a debates intermináveis, colocando o consumidor em situação de exagerada desvantagem por muito tempo”.
Para o advogado, cabia mesmo ao Poder Legislativo intervir. “Somente uma nova Lei seria capaz de reequilibrar essa relação”, comenta. Rodrigo diz que a função do Poder Judiciário agora é julgar e resolver os conflitos que venham a surgir em decorrência da violação da nova norma.
Também especialista em direito na área da saúde, a advogada Maria Emília Florim destaca que, mesmo após a aprovação do projeto de lei, as discussões não terminarão. “Os planos de saúde só serão obrigados a custear o tratamento que não conste do rol da ANS desde que o tratamento tenha eficácia comprovada cientificamente; seja recomendado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde; e seja recomendado por pelo menos um órgão de avaliação de tecnologias em saúde com renome internacional”, aponta.
Rogério Sacarebel, ex-presidente da ANS e advogado, vai contra o PL. “O problema tem uma questão central de saúde, da boa saúde, da entrega em tempo oportuno e de qualidade, mas não podemos nos afastar das bases da saúde suplementar, que é a definição de seu preço pela exposição ao risco, seja o risco pelos possíveis danos causados a saúde, pelo desperdício na demora ou imprecisão do tratamento, ou por não saber qual o tamanho da conta que virá no final do mês”, aponta.
Ele ainda complementa, afirmando que, nesse contexto, acredita que haverá uma maior consolidação do mercado, diminuindo substancialmente a concorrência. “Mais vazios assistenciais e o comprometimento da autonomia do profissional de saúde, pela consequente limitação contratual de cobertura, além do aumento da entrada de medicamentos de baixa qualidade e de pouco benefício”, diz.
A advogada Bruna Manfrenatti aponta os benefícios dos clientes com a decisão. “Para os consumidores o Projeto de lei desburocratizara o acesso às terapias fundamentais que tanto necessitam, não precisando mais acionar o judiciário para obter tratamentos que já possuem segurança comprovada e aprovação tanto de órgãos nacionais como internacionais, tais como transplante de fígado, bomba de insulina para os diabéticos, medicamento Clexane para gestantes com diagnóstico de trombofilia, medicamento à base de canabidiol”, exemplifica.
Thalita Menezes, de 27 anos, é uma das beneficiadas caso o projeto seja sancionado. Em 2020, a microempresária fez uma cirurgia bariátrica, procedimento cirúrgico de redução de estômago para pessoas com alto grau de obesidade. Devido à perda de peso, ficou com excesso de pele em várias partes do corpo. No entanto, o rol da ANS contempla apenas a abdominoplastia, cirurgia de retirada de pele e correção da barriga, como reparação.
“Pela avaliação do cirurgião plástico, eu preciso fazer mais duas reparadoras, a do braço (braquioplastia) e a das mamas (mastopexia sem prótese). Como esses dois procedimentos não estão na ANS, o plano de saúde negou, alegando justamente que não são procedimentos obrigatórios de serem cobertos”, contou. Thalita afirma que sem a cobertura do plano, não consegue realizar as cirurgias, que custam cerca de R$ 40 mil.
“Com a decisão do rol retornar a ser exemplificativo, eu vou conseguir solicitar novamente esses procedimentos ao plano de saúde e em caso de negativa, eu poderei entrar com uma ação Judicial para que o plano faça os procedimentos pois eles são de caráter reparador”, aponta.
Em nota, a ANS se posicionou contrariamente ao PL, informando que a garantia de coberturas não previstas no rol deixa de levar em consideração diversos critérios avaliados durante o processo de incorporação de tecnologias em saúde, tais como: segurança, eficácia, acurácia, efetividade, custo-efetividade e impacto orçamentário, além da disponibilidade de rede prestadora e da aprovação pelos conselhos profissionais quanto ao seu uso.
“Importante esclarecer que o processo de revisão do rol feito pela ANS não será alterado. A Agência continuará recebendo e analisando propostas de inclusão via FormRol de forma contínua, com as incorporações podendo acontecer a qualquer momento”, afirma a nota.
Ainda segundo a ANS, atualmente, o processo de revisão, que levava dois anos para ser concluído, hoje tem prazo de análise de, no máximo, nove meses. Tecnologias para o tratamento de câncer têm prazo de de quatro a seis meses. E aquelas tecnologias que já tiverem sido aprovadas para incorporação no SUS passam pela análise da ANS em, no máximo, dois meses.
O ex-presidente da agência, Scarabel, defende o posicionamento da ANS. “Precisamos realizar o aprimoramento das análises, aportar recursos, capacitar, avançar na adoção de medidas de critérios mais objetivos e claros a sociedade e não acabar com as análises”, aponta. Para ele, a aprovação do PL “será um enorme retrocesso”.
“Estamos na contramão do mundo, a agência já realiza as análises no prazo de 180 dias, de forma dinâmica, não há paralisação dos processos, somente no ano de 2022 já foram incorporadas 27 tecnologias, não há processo similar no mundo, seja quanto ao tempo ou em número, pelo menos que tenha conhecimento”, declara o ex presidente da ANS.
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) comemorou a aprovação do PL e apontou que a medida sana os problemas que foram causados pela decisão do STJ. “A decisão do tribunal tinha praticamente inviabilizado questionamentos na justiça, o consumidor precisava cumprir tantos critérios que era praticamente impossível conseguir realizar os procedimentos, e o Projeto de Lei reverte essa situação”, apontou Ana Carolina Navarrete, coordenadora do programa de saúde do Idec.
A entidade aguarda agora a sanção do PL pelo presidente Jair Bolsonaro. “O Idec comemora a aprovação do PL e espera que o governo tenha sensibilidade de sancionar o texto, sem veto. É importante a sanção para que os tratamentos prescritos por médicos sejam realizados, garantindo o direito do consumidor”, apontou Ana Carolina.
Fonte: IG ECONOMIA