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“Levei quase 30 anos para entender que sou uma mulher trans”

Eva Pires é empreendedora da dança e da beleza, tornando-se representante de beleza da Avon durante a pandemia; atualmente, ela estuda pedagogia
Acervo pessoal

Eva Pires é empreendedora da dança e da beleza, tornando-se representante de beleza da Avon durante a pandemia; atualmente, ela estuda pedagogia

“Quando criança, era muito difícil entender o que era ser uma pessoa trans. Eu só tinha aquilo que era passado para mim, de que um menino se veste de um determinado jeito ou age de uma certa maneira. Fiquei no meio de uma confusão. Tinha um jeito afeminado e sempre fui muito cobrada para me comportar de uma maneira mais masculina. Preferia fazer o que as minhas primas faziam. Elas eram a minha referência feminina, o que me contemplava. Só fui entender o que era ser uma pessoa trans realmente na fase adulta, com quase 30 anos.

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Fui criada entre as cidades de São Paulo e Guarulhos. Vim da favela, que era um ambiente hostil para mim. Era um ambiente em que se convivia muito com vizinho, pessoas próximas… Não era algo amplo. Na escola, fui abusada sexualmente quando eu tinha 14 anos, por cinco garotos mais velhos.

Eu não podia contar isso para minha família, porque eu seria colocada como culpada, apanharia. Meus pais vêm de uma educação rígida, o que me colocou em situações muito comprometedoras. Apanhei muito na infância, a ponto de ir para o hospital, sempre ouvindo aquela frase: ‘Vira homem’. Tenho dois irmãos e eles não apanharam nem 1% do que eu. Eu não os culpo porque eles não sabiam o que era uma pessoa trans, não se falava nisso.

Aos 15 anos acabei saindo de casa, falei que não ia mais aceitar. Graças ao universo, tive apoio de algumas tias, que me acolheram. No primeiro momento eu não queria ninguém, porque teria de continuar seguindo essas regras – a única diferença era que eu não apanharia. Quando vi que na rua era muito pior, decidi morar com a minha tia, trabalhar e juntar dinheiro pra conseguir viver minha vida de forma independente, lá pelos meus 18 anos.

Hoje tenho uma relação com a minha mãe, o que foi uma surpresa para mim. Quando eu disse a ela que eu era uma mulher, ela imediatamente mudou comigo. Começou a me chamar pelo meu nome, me tratar como filha. Fiquei surpresa. Ela é uma pessoa religiosa, teve pouca escolaridade e acesso à informação.

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Já o meu pai se afastou completamente. Tentei me aproximar, mas era impossível, muito violento para mim. Ele dizia que era violento para ele também. Não sei de que forma, mas não vou julgar. A gente prefere manter assim. Uma das minhas tias que me acolheu faleceu. Também cortei relações com a outra, que não me entende e não me aceita. Fiquei triste em ter perdido algumas pessoas, mas também ganhei outras. Vejo hoje como um livramento.

O contato com a primeira travesti

Acervo pessoal

“Quando a vi pela primeira vez, foi como perceber o que eu queria ver em mim”, diz Eva sobre o primeiro contato que teve com uma travesti, chamada Tati

Quando eu tinha 12 anos, vi uma travesti pela primeira vez. Ela morava no mesmo bairro que eu, trabalhava com prostituição, se chamava Tati. Eu tinha medo dela, porque fui ensinada assim. Lembro de meu pai falar que não era para eu andar ‘com aquele traveco*’, porque ela poderia me bater ou me furar com uma gilete.

Quando eu a vi fiquei encantada, porque vi algo que me identificou. Ao mesmo tempo, eu tive repulsa por causa da situação de vida dela. Um dia, eu estava voltando da padaria e a gente trocou algumas palavras. Ela disse: ‘E aí, tudo bem?’. Fiquei muda. Ela continuou: ‘Hoje foi babado, a noite foi difícil, mas consegui tirar um acuézinho’. Não entendi nada Parecia que ela estava falando em outra língua – e realmente estava [‘acué’ significa ‘dinheiro’ no pajubá]. Morri de medo, quase fiz xixi na roupa e entrei correndo em casa.

Depois disso, a vi mais umas duas vezes. Ela me deu oi, arrisquei e dei oi de volta, com um sorriso. [Chora]. Eu não consigo falar da Tati sem chorar, porque hoje ela é estatística. Ela era uma pessoa muito alta, negra, e morreu não muito tempo depois. Ela também foi vítima da violência transfóbica. Choro porque cada uma de nós que se vai é como um pedaço meu e de todas as outras que se vão junto.

Quando a vi pela primeira vez, foi como perceber o que eu queria ver em mim. Ela me fez me colocar nesse lugar de pensar quem eu sou, mesmo eu não tendo coragem de conversar com ela. Hoje penso que teria trocado altos papos com ela. Ficaríamos noites conversando.

Mudança de rumo

Com a ajuda da minha tia, concluí o ensino médio, fiz o ENEM e entrei na faculdade. Fui deixando minha questão própria em segundo plano. Ninguém da minha família chegou ao ensino superior, então precisava conquistar meu espaço. Via como uma forma de levar orgulho para os meus pais e achei que, naquele momento, pensar no mercado de trabalho seria importante para que eu pudesse sobreviver.

Consegui me formar em administração com muita dificuldade, trabalhando de dia para pagar o curso e estudando de noite. Aos 17 anos, comecei a trabalhar no setor de logística como ajudante e fui crescendo dentro da empresa. Foi quando entendi meu privilégio como pessoa branca, até então cis e lida como homem. A realidade das pessoas trans era muito pior há dez anos.

Já presenciei pessoas serem demitidas pela orientação sexual, então imagine eu falar de identidade de gênero. Ainda hoje é difícil. Tem quem pense que sou um homem gay que se veste de mulher, por exemplo. Percebi que teria de crescer na empresa para conseguir outro patamar de vida em que eu pudesse viver a minha realidade.

Percebi que área de logística era um ambiente formado 90% por homens 100% machista, com poucas mulheres cis dentro desses locais. Entendi que essa não seria uma área amigável para se trabalhar. Então, decidi trocar meu trabalho com carteira assinada para viver como empreendedora da dança, inicialmente. Comecei a dar aulas aos 27 anos.

Um batom que mudou tudo

Eva comenta a maneira como algumas pessoas ainda não compreendem a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero:
Acervo pessoal

Eva comenta a maneira como algumas pessoas ainda não compreendem a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero: “Tem quem pense que sou um homem gay que se veste de mulher”

Cresci dentro da igreja evangélica. Aprendi todos os dogmas e tudo que era dito como a lei de Deus. Desde criança entendi que eu era diferente, e fui entendendo que estava contra as regras de Deus. Me via como um homem gay antes da transição, e quando comecei a gostar de meninos, na adolescência, conversava com os pastores para entender mais. As respostas eram sempre as mesmas: ‘É pecado’, ‘Não pode’, ‘Lute contra isso’, “Faça 10 semanas de libertação para tirar esse mal da sua vida’.

Minha vida inteira eu procurei seguir essas regras, porque não queria ser uma pecadora nem ir para o inferno. Isso mudou quando me entendi como mulher trans, aos 26 anos, após frequentar mais o meio drag e de maquiagem. Demorei e precisei de muita terapia para ir atrás da minha própria aceitação.

Pesquisei muito e encontrei outras pessoas trans – incluindo minha mãe travesti, que é de Salvador. Ela me inspirou nesse processo, me deu força e me ajudou com muitas informações. Infelizmente há uma falta de profissionais de saúde voltados para nós, então a gente só pode contar com a informação das velhas. As ancestrais deixaram um rastro no chão de conhecimento – de sangue também, infelizmente – para que a gente tenha o mínimo.

Na infância, fugia com as maquiagens da Avon da minha tia, me escondia dentro do guarda-roupa e passava o batom todo borrado. Me sentia ótima. Isso fazia parte da minha memória afetiva. Até que, aos 28 anos, eu tive o primeiro vislumbre de Eva em um Carnaval de uma forma parecida.

Dei aulas de dança temáticas fantasiada de unicórnio. Eu não queria ir de Capitão Jack Sparrow de novo, queria fazer algo diferente. E aí, passei um batom pela primeira vez. Tinha me sentido bem ao ver um pedacinho de mim ali. Lembro que, na aula, fiquei com vergonha, de cabeça baixa. Era um preconceito meu, mas foi o máximo porque todos estavam se divertindo, fantasiados.

Era um batom rosinha, bem claro. Tenho guardado até hoje. Ele já venceu, mas vai ficar guardado como uma memória. Aos 30 anos, na pandemia, comecei o processo de hormonização.

‘É o seguinte, eu sou uma mulher’

Antes da pandemia, eu me preocupava com o que aconteceria comigo se eu me assumisse enquanto mulher trans. Se perderia o emprego, meus amigos ou se meu casamento acabaria. Tinha muita certeza que meu marido ia me deixar, porque ele se identificava como um homem gay. Com a pandemia, não tive como fugir e olhei para mim mesma.

Antes, eu conseguia ir para a casa de alguém, sair para trabalhar ou me distrair em outro lugar. Na pandemia, não tive como fugir. Tomei coragem para contar ao meu marido. Já estava conversando até com advogado para fazer o divórcio. Estava doendo, mas pensei: ‘Dor de amor passa, eu amei os outros e me odiei para caramba. Agora é hora de me amar’.

Cheguei no meu marido e disse: ‘É o seguinte, eu sou uma mulher’. Ele disse: ‘Eu sei, eu sempre soube’. Disse ainda que não tinha problema e que me amava como eu era. Ele mesmo já estava se entendendo enquanto bissexual. Ele já me via enquanto mulher mesmo sem eu dizer.

Estamos casados há quatro anos. Entre os nossos próximos planos está ter um filho, o que deve acontecer em breve.

Ocupando espaços no empreendedorismo

Eva sentada com um microfone na mão, sorrindo
Acervo pessoal

“Quero que esse território se torne LGBT e das travestis”, diz Eva sobre o empreendedorismo

Na pandemia, não tive mais como ganhar dinheiro dando aula. Sempre fui muito independente, me sustentei com meu trabalho desde muito jovem e não aceitei de forma alguma ficar parada. Instantaneamente, pensei em me tornar representante de beleza da Avon. Esse foi o meu refúgio nesse momento difícil para continuar trabalhando e me sentir melhor no meio daquele caos que nós vivemos, além do meu próprio.

Eu tenho um carinho pela marca e falo com muito carinho dos produtos, porque me remete à minha infância. Por isso, eu vendi muito. Naquele momento, fazia as vendas pela internet e fiz até lives no Instagram para mostrar melhor os produtos. Pessoas próximas a mim começaram a me procurar também como uma forma de me ajudar naquele momento. Digo que a dança me salvou, me tirou da deprê que eu estava, e a Avon me trouxe de volta ao mundo de antes da pandemia.

Agora, me organizo entre as aulas de dança, as vendas e a faculdade de pedagogia. Mas o empreendedorismo é, para mim, um caminho sem volta. Aprendi que a própria travesti na prostituição compulsória, lugar que mais de 90% de nós ocupamos, está empreendedo a força. Só que eu quero seguir este caminho por uma escolha, não por uma condição.

Quero que esse território se torne LGBT e das travestis. É importante trazer esperança para as mulheres trans, travestis, homens, transmasculines e pessoas não binárias. Precisamos nos unir e tentar, de alguma forma, fraudar esse sistema que está nos matando a torto e a direito.

Assim como eu tive algumas possibilidades, espero que minha história inspire essas pessoas a seguirem suas próprias trajetórias. Que não seja um caminho de dor, mas de sucesso para todas as pessoas trans e aliadas.”

*Maneira pejorativa para se referir à uma mulher trans ou uma travesti. O correto é se direcionar a uma travesti nos pronomes femininos.

Fonte: IG Mulher

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