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A fala do Beco do Candeeiro. Fome de quê?

A fome não é o resultado de uma economia deficitária, é o resto de uma economia de distribuição desigual dos bens.

“Não podem haver objetivos espontaneamente dados ‘pela realidade’, mas uma vez interesses são o que construímos e a política nesse sentido leva vantagem sobre a economia”. (página 181) Terry Egleton 

Dessa perspectiva o que nós precisamos não é de ter dinheiro para “dar de comer a todos”, como comumente ouvimos, mas sim de construir uma sociedade solidária entre nós. O cálculo do salário mínimo pelo Dieese atualmente está acima de 5.000 reais. Vocês sabem que o salário mínimo é o cálculo de uma pessoa viver minimamente com dignidade, não é? Pois então, imaginemos que há pessoas – e não são poucas – que vivem com 20% desse mínimo. E tem gente que vive com menos. E não só uma pessoa, mas famílias! Como vocês acham que vivem essas pessoas? Com solidariedade. Quero dizer isto: que a política dirige a economia, a fome pode deixar de existir, se decidirmos isso.

Agora vejamos, vocês imaginam o que é não ter o que comer? Talvez sim, talvez vez ou outra, voltando de uma trilha, tenham sentido o fardo que é realmente estar com os níveis de glicose baixos no sangue. O corpo pesa, nossa sensação é de falência. E não é retórica, é real! O corpo pesa mesmo. Carolina Maria de Jesus, mulher negra, que viveu praticamente toda a sua vida em situação de rua, escreve o seguinte: 

… a comida no estômago é como o combustível nas máquinas. Passei a trabalhar mais depressa, o meu corpo deixou de pesar. Comecei a andar mais depressa, eu tinha impressão que eu deslizava no espaço. Comecei a sorrir como se estivesse presenciando um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?

Carolina Maria de Jesus 

Muito bem… vamos adiante com essa situação. Vamos imaginar que a questão vai mais fundo. Que não somos nós, mas nossos filhos. Se vocês têm filhos, ou já foram filhos, sabem o quanto é difícil negar algo para uma criança. Mas a gente nega, embasados principalmente naquilo que se refere ao que entendemos como “superficial”. Vocês já imaginaram o que é ser privado de dar o essencial para essas coisinhas lindas e maravilhosas que são os filhos? Se vocês já tiveram alguma experiência com bebês bem pequenos sabem que o que dá suporte para acalmar esses serezinhos desamparados é o alimento. Crianças mal alimentadas não dormem direito. E enquanto não dormem, choram. Imaginem então passar dias ouvindo constantemente o choro de um bebê, seu filho, sabendo que é de fome e dar a ele algo que nunca o sacia suficientemente. Imagine a irritação a que você ficaria submetido. Imagine onde iria parar seu amor por essa criança. Imagine se você também tivesse passado fome e, sobrevivente, sentisse que a criança também poderia aguentar e por isso brigasse com ela. Imagine a violência que a fome causa. Quando a necessidade entra pela porta, o amor pula a janela.

Imaginem essa criança na escola, certamente tinha déficit de atenção, certamente as piores notas, certamente ridicularizada pelos colegas e provavelmente tida como sendo “um problema” para a maioria dos adultos em seu entorno. Não é possível saúde mental num meio desse. A saúde mental é relacionada sim, ao meio. Se não é totalmente colada, tampouco é totalmente descolada.

Esse é o conteúdo do livro de Carolina Maria de Jesus. Se vocês querem realmente saber o que é a fome, leiam-no. É um aprendizado cortante!

Agora, vamos dar ainda mais um passo. Certamente vocês também já passaram por pessoas na rua molambentas dormindo no chão ou pedindo dinheiro na rua. Pessoas abandonadas, sujas, sem dentes e de roupas rasgadas que, muitas vezes estão fétidas, rescindindo a álcool e, às vezes, em cena de uso. Essas pessoas devem ter lhes causado repulsa e por isso vocês podem ter-lhes maltratado. Se você pessoalmente nunca fez isso certamente conhece alguém que fez, já presenciou isso, mais de uma vez. Pois então, o atual estágio dessas pessoas é decorrente de uma infância famélica. Uns podem se levantar aqui e dizer que isso não é verdade. Que a infância no Brasil não passa fome como passava e que conhece gente que nunca passou fome e está nas ruas. Muito bem, exceções são exatamente aquilo que confirmam uma regra. Mas quero argumentar mais profundamente. Quero argumentar que a fome de reconhecimento vem primeiro que a fome de alimento.

Essas pessoas não têm o reconhecimento de que foram crianças famélicas e seus pais não tiveram e seus avós também não. Elas são tratadas hoje como pessoas sem história e sua história, quando é contada, não é ouvida, é descartada, jogada fora, pois “você vai acreditar no depoimento de um noiado”?

Contudo, você também deve ter passado pela experiência de estar na internet rolando a página das redes sociais e ter visto um anúncio ou ter sido acometido por alguém pedindo dinheiro para você para uma cirurgia, compra de alimentos ou qualquer outra coisa assim; e alguma dessas histórias te tocou. Você doou dinheiro para ela. Mesmo que não tenha sido uma entidade. Pelo menos alguma vez você deve ter dado dinheiro a alguém que não conhecia para ajudá-lo e em alguma coisa que não necessariamente teria retorno para você, foi pura caridade.

Aí é que está o ponto onde eu queria chegar. Por que algumas pessoas têm a nossa empatia e outras não? Empatia, compaixão; tratam-se de palavras que afirmam o sofrer com. Incorporamos a narrativa do outro como se fôssemos nós mesmos a viver aquela história. E volta e meia encontramos na história do outro, partes que são idênticas às nossas! Chamamos isso de “bater o santo” no Brasil (meu santo bateu com o dele). Mas será que isso é místico assim? Será que precisamos apelar para o santo? Bem, ainda que longe de mim dizer que tudo pode ser explicado, nesse caso em específico, preferimos apelar para Freud, que nos ensina a condição narcísica do Eu. O próximo é uma ameaça, um estranho, alguém que pode me fazer muito mal. A passagem do estranhamento para a identificação, o reconhecimento da semelhança e o laço entre os semelhantes, só é possível depois desse investimento do meu eu nesse outro, que se torna meu semelhante porque o Eu se identificou, nas suas semelhanças, com o outro, o investimento libidinal do Eu no outro, o torna semelhante. Dar ao outro lugar de semelhante é dar revestimento simbólico, lugar de fala a partir do reconhecimento da semelhança e das diferenças. As diferenças entre falas e lugares sociais dizem respeito aos processos históricos e a organização do poder. O conceito de raça, sabemos, é sociológico. Ele tem a ver com o poder. Quem diz o que é preto e branco? Quem tem o poder de revestir simbolicamente essas categorias sociológicas? O racismo estrutural, conceito complexo e pouco reconhecido em sua grande inovação nas instituições, é a construção histórica dessa dessemelhança que estabelece com o negro a relação de próximo/estranho em nossa socialização. Ele é a tampão de ouvido que torna inaudito o dito de muitos.

Vocês já ouviram provavelmente que recentemente em Cuiabá há uma onda de violência policial ocorrendo contra pessoas em situação de rua. Em outubro uma garota de 23 anos foi queimada com spray desodorante e isqueiro por policiais fardados, ou seja, a trabalho. Causa: ela era uma “noiada”. Os policiais pegaram as roupas e pertences de várias pessoas em situação de rua que se abrigam no Morro da Luz, juntaram e queimaram. A garota se desesperou porque havia na fogueira pertences importantes dela e meteu-se entre as chamas para retirar uma coisa ou outra. Irritados com a atitude da menina, os policiais dirigiram-lhe o lança-chamas improvisado queimando boa parte do seu corpo, de modo que a garota teve que ser levada ao hospital pelo SAMU. (Vê-se que a “caça às bruxas” ainda tem ocorrência em nosso tempo.)

Agora vejamos, será que o policial teria lançado chamas numa pessoa branca, bem vestida, com todos os dentes na boca, perfumada e numa roda de amigos, numa praça em um local nobre da cidade como o Chopão ou o bairro Popular? Vamos diminuir a diferença, será que faria isso com uma pessoa em condições de dignidade no mesmo local? Vê-se como o racismo é uma lente que aplica uma dessemelhança num outro que poderia, de outra forma ser visto como semelhante?

Mas o racismo não possui essa construção tão superficial quanto vocês pensam, sendo esta a pele. Há desvalorização de hábitos, modos de falar, traços genéticos, religiões e vestimentas que originalmente eram negros e indígenas e isso é um não reconhecimento do outro enquanto semelhante. Os policiais que abordaram essa garota não reconhecem ali uma pessoa avassalada pela fome, com uma história de um núcleo familiar infernal e desde lá culpada por estar malvestida, desdentada, ser “burra” porque não aprende na escola… Ninguém ou muito poucos reconheceram sua fome. Sua fome desde sempre.

É nisso que dizemos que a fome é fome de reconhecimento. As pessoas não sabem, não ouvem, não acreditam no que a população de rua fala! E o que faz o reconhecimento de alguém é a ESCUTA. A invisibilidade desse sofrimento é melhor entendida se for pensada como um tampão de ouvido. Um aparelho que distorce as vozes, a entonação das vozes. E a população de rua é ouvida sempre como se fosse um monstro a rosnar contra nós! Assim os tratamos que nem cachorros e, claro, respondem a esse destrato! E então, estamos na selva! Expulsamos a civilidade e cria-se uma ideia de que não podemos conviver, é “ou nós ou eles”. E a Lei da Selva é a lei do mais forte.  Eles estão sempre oprimidos nas ruas, não existe lugar para eles. A primeira reinvindicação que o MPR faz é: “MORADIA EM PRIMEIRO LUGAR! É preciso escutar, a moradia é condição de dignidade humana, o teto é a base da condição de proteção e cuidado com a vida.

Mas qual é a nossa posição a seguir? Considerando que esse “nós” são as instituições, são os alimentados, os “inteligentes”, os reconhecidos, será que não temos nenhuma dívida simbólica nesse contexto social? O que estamos fazendo quando medimos o outro pela nossa régua e por isso os julgamos e condenamos? Estamos matando por falta de escuta. A primeira morte é porque não os recobrimos simbolicamente, não os consideramos semelhantes, eles são estranhos, não queremos saber disso e depois, vem a morte real.  Nesse processo nem nos comovemos com as mortes reais. É por isso que dizemos que a maior fome no Brasil é fome de reconhecimento. Reconhecer é conhecer de novo. Trata-se de lançar-se numa nova posição para a mesma coisa, o deslocamento é relativo a mudarmos o olhar, o mundo muda se mudamos a perspectiva do olhar. A perspectiva do olhar é a política nesse caso, pois “interesses são o que construímos”, como nos disse esse grande pensador da ideologia, Terry Eagleton, a política rege os investimentos da economia.

É por isso que devemos afinar os ouvidos ao diapasão do grito da fome desse país famélico. A droga e sua economia compulsiva aparecem como amortecimento frente ao desamparo do Estado e o sofrimento mental. Como oferecer amparo (tecimento-de-amor, tomando o amor-tecimento pelo seu avesso) que permita o protagonismo das pessoas em situação de rua? O tecimento de amor é revestir esses corpos de atenção e cuidado.

 A escuta é a verdadeira caridade!  É preciso escutar para dar ao outro lugar de fala, falar ao outro, com o outro, é estar contando para o outro, no sentido de narrar ao outro e no sentido de contar, entrar nas contas. É preciso que se conte como mais um, cada um. É preciso escutar para colocarmos as pessoas em situação de rua nas contas!  O abuso de álcool e outras drogas não é causa da fome, é consequência! As pessoas em situação de rua são pessoas como nós! Pessoas que amam como nós, se sentem mal com os maus tratos como nós, que sofrem como nós sofreríamos se fôssemos queimados com lança-chamas de spray desodorante! Nossa aposta é que elas contando possam ser contadas! E é por isso que nos afinamos com o lema da População de Rua, invertendo-o: “Nada por eles sem eles”.

Nosso profundo respeito a todas as vidas que quiseram ser ouvidas e que nesses 7 anos de trabalho do “Psicanálise na rua” estivemos tecendo o fio desse laço, desse lastro, dessa luta.

Grata por ser escutada!

*Adriana de O. Rangel é psicanalista do Laço Analítico Escola de Psicanálise, doutora em Psicologia e professora na Universidade Federal de Mato Grosso, com atuação no projeto “Psicanálise na rua”.

Fonte: MP MT

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