DA ECYCLE
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Se o aquecimento global e o desmatamento crescentes transformarem a Amazônia numa savana seca e degradada de modo irreversível, o que poderá acontecer às cerca de 300 espécies de mamíferos que ali vivem? Onças, antas e veados entre eles.
Foi essa pergunta que os biólogos Daniel Rocha e Rahel Sollmann trataram de responder em um artigo publicado recentemente no jornal Animal Conservation.
Para isso, os dois pesquisadores analisaram imagens de 400 armadilhas fotográficas instaladas em quatro enclaves naturais de Cerrado existentes na Amazônia, formados há milhares de anos: o Parque Nacional dos Campos Amazônicos, o Parque Nacional Mapinguari — ambos no Amazonas —, a Reserva Biológica do Guaporé e o Parque Estadual de Corumbiara, estes em Rondônia.
O objetivo foi entender como mamíferos terrestres de médio e grande portes se comportam nessas ilhas de savana no meio da floresta. E, assim, fazer uma projeção do que poderia acontecer caso, em alguns anos, mudem o clima e a vegetação da maior floresta tropical do mundo.
Faz alguns anos anos já que pesquisadores vêm alertando para o risco de uma savanização da Amazônia: um ponto em que a floresta, castigada por um combinação de desmatamento e mudanças climáticas, poderá se tornar uma vasta planície sem árvores.
“Por causa do aquecimento global, estudos sugerem que haverá mudanças na vegetação amazônica por causa da diminuição da quantidade de chuva na região. À medida que você perde mata, a precipitação fica menor”, afirma Daniel Rocha, professor da Southern Nazarene University, em Oklahoma, nos Estados Unidos.
Com o avanço das mudanças climáticas, prevê-se que áreas de vegetação mais aberta se alastrarão de modo progressivo pela Amazônia, sobretudo nas bordas sul e leste do bioma — área conhecida como Arco do Desmatamento, a região onde a fronteira agrícola avança em direção à floresta.
O termo “savanização” é comumente empregado para áreas da floresta que vão se tornando mais secas e abertas, assemelhando-se estruturalmente ao Cerrado, considerado uma savana.
Rocha, porém, ressalva que o termo savanização não é apropriado: “Sugere que a mata será substituída por savanas naturais. Mas, na verdade, essas são florestas degradadas, que nem de longe possuem a riqueza e a diversidade de uma savana original”.
“Infelizmente, há mais perdedores do que vencedores”
Para realizar o estudo, Rocha e Sollmann coletaram milhares de imagens por meio das armadilhas fotográficas durante um período de quatro anos, entre 2016 e 2020.
Empregando modelos estatísticos, os cientistas quantificaram como 31 espécies de mamíferos terrestres usavam as áreas de Floresta Amazônica e as ilhas de Cerrado e quais elas preferiam, já que muitos animais são conhecidos por transitar bem entre os dois biomas.
Estavam na lista de espécies estudadas as especialistas em florestas, como o veado-roxo (Mazama nemorivaga) e o cachorro-do-mato-de-orelhas-curtas (Atelocynus microtis); as chamadas generalistas, presentes tanto na mata como na savana, como a a onça-pintada (Panthera onca), a anta (Tapirus terrestris), o queixada (Tayassu pecari), a onça-parda (Puma concolor) e o tamanduá-mirim (Tamandua tetradactyla); e aquelas que preferem áreas abertas.
“Após recolhermos as imagens em campo, fomos fazendo o reconhecimento de cada espécie e quantificamos a intensidade de uso de cada uma delas em determinado habitat, ou seja, sua presença mais frequente ali. E o que percebemos é que a maiorida dos bichos usa mais as áreas com mata”, diz Rocha.
De acordo com a análise, mesmo as espécies que costumam usar ambientes de floresta e savana demonstraram dar preferência àquelas com vegetação mais densa e fechada, onde acredita-se que a disponibilidade de recursos é maior, seja para buscar abrigo, esconder-se de predadores ou encontrar alimentos.
Apenas alguns animais, que eram especialistas em áreas abertas, preferiram as áreas de Cerrado, como é o caso do lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), do cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus) e do veado-campeiro (Ozotoceros bezoarticus).
“Tudo indica que essas espécies seriam menos afetadas pelo processo de savanização”, diz Rocha. “Mas, infelizmente, há mais perdedores do que vencedores. A maioria das espécies amazônicas, quando pode escolher entre áreas de florestas preservadas ou áreas de Cerrado preservadas, escolhe a floresta”.
O estudo não fala em extinção dessas espécies, mas na redução de suas populações e na sua abrangência geográfica.
Savanização: mais perto do que se pensa
De acordo com outro estudo divulgado no início de março na revista Nature, o risco da savanização de áreas da Amazônia pode estar mais próximo do que se pensa. Pesquisadores da Universidade de Leeds, no Reino Unido, fizeram uma correlação entre a perda de cobertura arbórea e a redução das chuvas em florestas tropicais na América do Sul, na República Democrática do Congo e no Sudeste Asiático.
Imagens de satélite e dados de precipitação entre 2003 e 2017 de áreas desmatadas, sem cobertura vegetal, e de outras que não sofreram deflorestamento, comprovam claramente como a derrubada da mata influencia o ciclo hidrológico e a precipitação.
Quanto maior a área desmatada, maior é a queda nas chuvas. No caso do Congo, se o ritmo atual de destruição continuar, até o final deste século a pluviosidade poderá ser reduzida entre 8% e 12%.
“A perda florestal projetada na Amazônia resultará em uma redução na precipitação de cerca de 2 mm por mês para cada ponto percentual perdido na cobertura florestal, o que equivale a cerca de 1% de declínio na precipitação”, afirma o pesquisador Callum Smith, autor principal do estudo.
Na Amazônia brasileira, vale destacar que fevereiro de 2023 teve um recorde negativo histórico: foram desmatados 322 km2 de floresta, o mais alto índice para esse mês desde que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) começou a fazer essas medições em 2015.
Para Rocha, é preciso lembrar também que as mudanças climáticas estão entre os principais vetores para a possível savanização da Amazônia — e elas não são um fenômeno local, mas global. Irão afetar todo tipo de área, inclusive aquelas protegidas.
“Todas as Unidades de Conservação que fizeram parte do nosso estudo estarão sujeitas a este processo. Assim, nossa capacidade de proteger essas espécies de animais tanto em áreas de proteção como naquelas desprotegidas será menor. E isso é uma coisa preocupante”, afirma.