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NA AMAZÔNIA

Proteger terras indígenas previne 15 milhões de casos de doenças

GETTY IMAGES

A Amazônia pode absorver 26 mil toneladas de poluentes gerados pelas queimadas todos os anos — e 27% desta capacidade vêm dos territórios indígenas, apesar de eles ocuparem 22% da área de floresta.

Esses são alguns dos achados de uma pesquisa inédita, que acaba de ser publicada no periódico acadêmico Communications Earth & Environment, do Grupo Nature.

O trabalho estima que, ao proteger as terras manejadas pelos povos originários, seria possível evitar 15 milhões de casos de doenças respiratórias e cardiovasculares por ano, que custariam 2 bilhões de dólares (R$ 10 bilhões) ao governo brasileiro.

Esses problemas de saúde estão relacionados ao contato das populações locais com poluentes chamados de “partículas finas ou inaláveis” (também conhecidos pela sigla PM 2.5), que são liberados a partir das queimadas, uma das práticas mais comuns para a abertura de pastos para a pecuária e campos para agricultura na Amazônia.

A pesquisa ainda mostrou que esse efeito protetor das áreas de florestas é abrangente: territórios indígenas bem preservados localizados mais ao norte conseguem absorver a poluição gerada a quilômetros de distância no arco do desmatamento, que se concentra nas porções sul e sudeste da floresta.

Como o estudo foi feito

Um time de especialistas de diversas instituições — da ong EcoHealth Alliance, da Universidade Clark, dos Estados Unidos, da Universidade Autônoma do México e da Universidade de São Paulo (USP) — compilaram estatísticas dos últimos dez anos sobre desmatamento, queimadas, emissão de poluentes e notificações de doenças na Amazônia Legal brasileira.

A partir do cruzamento desses dados e da aplicação de métodos estatísticos complexos, eles conseguiram fazer os cálculos apresentados no estudo.

O levantamento descobriu que, entre 2010 e 2019, 1,68 toneladas de partículas finas de poluentes foram emitidas todos os anos.

“Um número menor de doenças foi encontrado nos municípios com mais áreas preservadas e com menos fragmentação [da mata], o que provavelmente está relacionado à capacidade da Floresta Amazônica de absorver as PM 2.5”, escrevem os autores.

Mas como a poluição causa tantas enfermidades? O artigo destaca que esses compostos tóxicos provocam disfunções no endotélio (a camada interna dos vasos sanguíneos), estimulam a inflamação, aumentam o risco de tromboses e afetam o metabolismo — o que gera consequências no coração.

As tais partículas inaláveis ainda danificam diretamente as estruturas do pulmão e tem potencial mutagênico — ou seja, de transformar células saudáveis em tumores.

Como explicado anteriormente, das 26,3 mil toneladas de compostos tóxicos que podem ser retidos pelas folhas das árvores todos os anos, 27% desta capacidade de absorção está concentrada em territórios indígenas.

O número chamou a atenção dos pesquisadores, uma vez que esses povos ocupam oficialmente apenas 22% da área da Amazônia — isso sugere que o manejo dos recursos naturais feito por eles é ainda mais eficiente para minimizar os danos das queimadas que ocorrem em outras porções de mata.

“E, por conta desse importante papel de absorção, as florestas mantidas pelos indígenas têm uma capacidade de evitar 15 milhões de casos de doenças cardiovasculares e respiratórias relacionados aos poluentes a cada ano”, resume a cientista Paula Prist, pesquisadora sênior da EcoHealth Alliance e autora principal do estudo.

“Esses problemas de saúde gerariam um custo de 2 bilhões de dólares”, complementa a cientista.

Cada hectare de floresta queimada, estima o trabalho, implica num custo de pelo menos 2 milhões de dólares (R$ 10 milhões) no tratamento de doenças relacionadas à poluição.

Para ter ideia, entre 19 de maio e 31 de outubro de 2021, um total de 519 mil hectares de áreas naturais da Amazônia foram consumidas por incêndios.

Os especialistas destacam que muito provavelmente todos esses números estão subestimados, pois ainda não existem estudos sobre a capacidade de absorção de árvores tropicais, e foram usados os valores de referência de florestas de zonas temperadas do Hemisfério Norte. Portanto, é possível que o efeito da preservação da Amazônia seja ainda maior.

Prist classifica os números encontrados como “surpreendentes” e acredita que eles reforçam a ideia de que preservar a Amazônia é uma questão de saúde pública.

“E também é muito impactante pensar que esses efeitos se estendem por um raio de 500 quilômetros, que é a área por onde a poluição das queimadas se espalha”, diz a ecóloga.

Na prática, isso significa que uma área localizada num canto da floresta consegue absorver os compostos que são liberados do outro lado, minimizando os danos à saúde para as populações que vivem no meio dessa região.

‘Concretização do que já sabíamos’

Em coletiva de imprensa realizada para comentar os principais achados da pesquisa recém-publicada, o cientista Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da USP, afirmou estamos cada vez mais nos aproximando do “ponto de não retorno”, quando a destruição da floresta ficará tão grande que ela não será mais capaz de se recuperar.

“Estamos diante de um enorme risco, mas fazemos muito pouco para mitigá-lo. Esse artigo só reforça a importância de preservar a Amazônia como uma maneira de proteger a nossa própria saúde”, disse.

O advogado Dinamam Tuxã, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), afirmou que investigações científicas como esta ratificam e concretizam conhecimentos acumulados pelos povos da região há milhares de anos.

“O estudo só reforça a importância do conhecimento e das práticas tradicionais para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e do desmatamento”, disse.

“E isso tudo demonstra a necessidade de retomar a demarcação de territórios indígenas como uma maneira de enfrentamento das queimadas”, complementou.

Maypatxi Apurinã, representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), avaliou que os dados da pesquisa dão noção “do árduo trabalho que todos terão pela frente”.

“Precisamos empoderar os povos indígenas na manutenção dos recursos, porque a floresta em pé significa uma boa qualidade do ar para nós, para a região e para o mundo inteiro”, constatou.

A ecologista Marcia Macedo, diretora do Programa de Água do Centro de Pesquisas Climáticas Woodwell, dos Estados Unidos, se mostrou bastante preocupada com o futuro da floresta.

“O fogo não é um elemento natural na Amazônia. Ele depende da ação humana e de três fatores: as fontes de ignição, o clima e a biomassa seca”, explicou.

As fontes de ignição citadas pela especialista são o combustível que dá início às queimadas. O clima, cada vez mais quente e seco, ajuda na propagação das chamas. E a biomassa é composta pelas árvores e gramíneas mortas, que entram em combustão com facilidade.

E isso forma o conjunto perfeito para que as queimadas se alastrem e fiquem mais intensas.

“As bordas da floresta estão cada vez mais secas e vulneráveis à entrada do fogo”, alertou a ecologista ao defender políticas que deem “prioridade aos povos indígenas no controle das queimadas e da integridade do território”.

Já Patricia Pinho, diretora científica adjunta do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), destacou que “as mudanças climáticas agravam ainda mais as desigualdades e a pobreza”.

“Sem uma adaptação e uma transformação em larga escala, a perda de biodiversidade e cultura vai se tornar irreversível e comprometer a possibilidade de um futuro justo e acessível a todos”, discursou.

A pesquisadora, que também integra o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), destacou que “os povos indígenas têm a solução para assegurar o bem-estar humano em múltiplas escalas”.

Por fim, Paula Prist lembrou que a pesquisa recém-publicada é uma das poucas, “senão a primeira”, a tentar mensurar “o quanto a perda dessas florestas custaria à saúde humana”.

“A nossa própria sobrevivência no planeta está conectada a esses recursos naturais”, constatou.

Ela defendeu, inclusive, que é urgente agir agora, antes da temporada de secas e queimadas deste ano, que se inicia a partir de julho.

“Nosso trabalho é mais uma prova de que a floresta em pé vale muito mais do que deitada no chão”, disse.

“A saúde e o bem-estar de todos nós estão intimamente ligados à conservação da Amazônia”, conclui a autora do artigo.

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