O trailer do live-action da “Pequena Sereia”, lançado no dia 8 deste mês, está dando que falar, devido à escolha do elenco para o filme. Nesta nova versão do clássico da Disney, a personagem principal, a princesa Ariel, será interpretada pela cantora e atriz norte-americana, Halle Bailey. Entretanto, embora Halle tenha demonstrado um grande talento para interpretar a sereia, o simples fato de ser uma mulher negra tem provocado a fúria de inúmeras pessoas.
Entre no canal do iG Delas no Telegram e fique por dentro de todas as notícias sobre beleza, moda, comportamento, sexo e muito mais!
Até o momento, o trailer divulgado na plataforma do YouTube, já ultrapassou 1,5 milhão de deslikes, “não gostei”. Além disso, Halle Bailey também tem sofrido inúmeros ataques racistas nas redes sociais. Frases como “A Ariel é branca. Aceitem isso” tomaram a internet nas últimas semanas e até mesmo uma hashtag #NotMyAriel “Não é a minha Ariel” foi levantada no Twitter.
Os ataques foram tão intensos que uma das dubladoras da animação de 1991, Marisa Leal, se sentiu no dever de vir a público, por meio de um vídeo, defender a atriz Halle Bailey.
“Eu gostaria até de me posicionar em relação, a isso. Parece que houve muitos deslikes em relação a atriz não ser ruiva e branca. E ser uma atriz preta, mas ela é uma menina linda, qual é a diferença se ela é branca ou preta? É um personagem. Ali, o que a gente está interpretando é a história, é a emoção. É a personagem que queria conhecer o mundo… e a Halle Bailey colocou a coisa de um jeito tão bonito, uma atriz maravilhosa…”, defendeu a dubladora.
O que causa uma reação tão agressiva de pessoas adultas?
Apesar de as crianças terem reações positivas ou até mesmo indiferente ao fato da Ariel ser interpretada por uma mulher preta, pessoas adultas se mostram extremamente agressivas e irritadas com a escolha do elenco. O psicólogo Luiz Mafle explica que, com o tempo, o cérebro humano acaba criando padrões, que se tornam cada vez mais rígidos com o passar dos anos. E esse pode ser um dos motivos biológicos para as atitudes mais agressivas dos adultos.
Acompanhe também o perfil geral do Portal iG no Telegram!
“Existe um processo que chama de familiaridade. Em um primeiro momento, diante de uma nova informação, a tendência é ser agressivo, mas a partir do momento que ela começa a ser repetida, a pessoa vai se familiarizando, para, no final, até mesmo gostar. Mas a reação inicial é como se fosse uma defesa daquilo que é estranho, em um primeiro momento a tendência do ser humano é agredir. Nós fomos criados em um padrão em que apenas pessoas brancas eram representadas como bem sucedidas. Por isso que quando outros tipos de pessoas são mostrados, ocupando esse lugar de destaque, a primeira reação humana é agir como se isso fosse algo errado ou perigoso”, diz o profissional da saúde.
Ele também aponta que a presença de grupos minoritários pode provocar em pessoas privilegiadas a sensação de perda de privilégios ou de que ela agora precisa rever os seus valores e comportamentos, o que também pode despertar uma atitude hostil nessas pessoas.
“Fomos criados para entender que esse padrão eurocêntrico é o ideal e quando precisamos encarar que essa constituição não é uma verdade, a primeira reação é de agressão. Porque isso coloca em risco alguns privilégios e também nos faz questionar se as coisas que aprendemos durante toda a nossa vida realmente estão certas ou até mesmo nos faz questionar se alguma vez já fomos preceituosos. Para mascarar o sentimento de culpa, as pessoas agem com agressividade”, fala Mafle.
Mesmo quando competentes, mulheres pretas não recebem reconhecimento
Em 2015, a atriz Viola Davis, ao ser a primeira mulher negra a ganhar um Emmy, maior prêmio norte-norte-americano para seriados e programas de televisão, recitou em seu discurso as palavras da abolicionista Harriet Tubman.
“Na minha mente, vejo uma linha. E depois dessa linha, vejo campos verdes, flores adoráveis e lindas mulheres brancas com seus braços esticados na minha direção, depois dessa linha. Mas não consigo chegar lá. Não consigo passar dessa linha”, discursou a atriz.
Naquela ocasião, Viola Davis aproveitou o momento para destacar como mulheres negras têm menos oportunidades no mudo do audiovisual, pois elas nem mesmo chegam a ser escaladas para papéis. Mesmo que sejam boas profissionais, os roteiros de filmes e séries não percebem a existência de mulheres pretas.
Mais recentemente, em 2018, ao ser entrevistada no evento Women in the World Los Angeles, Viola novamente pontuou a marginalização das mulheres pretas. Porque além de terem que lidar com a falta de espaço no audiovisual, elas também recebem salários menores do que pessoas brancas.
“(As atrizes negras) ganham provavelmente um décimo do que ganham as atrizes brancas. Eu estou no topo da lista, e tenho que ir lá batalhar pelo meu valor. É isso que sinto que estou fazendo… Tenho uma carreira provavelmente comparável às de Meryl Streep, Julianne Moore, Sigourney Weaver. Elas traçaram o mesmo caminho do que eu, mas não estou nem perto delas, não no que diz respeito a dinheiro e oportunidades de trabalho. Constantemente tenho que pegar o telefone (para negociar), e as pessoas dizem: ‘Você é a Meryl Streep negra. A gente te ama, não há ninguém como você.’ Ok, então se não há ninguém como eu, se você acha isso, me pague de acordo com o meu valor. Dê-me o que eu valho. Eu tenho valor”, falou Davis.
Viola Davis evidencia como mulheres negras são constantemente desrespeitadas na indústria do entretenimento. Halle Bailey demostra uma performance musical impressionante, capaz de emocionar os telespectadores, em poucos minutos do trailer. No entanto, apenas por ser uma mulher preta, todo o seu talento e profissionalismo são descartados.
É o que explica a antropóloga e cientista social Luana Batista. De acordo com a especialista, mulheres negras são as mais afetadas com o desemprego, em diferentes áreas de trabalho e a situação só piora conforme os cargos são mais altos. Mesmo que as mulheres tenham competência para assumir a vaga.
“Dados mostram que mulheres negras, mesmo quando são muito competentes e muito inteligentes, ainda são rejeitadas pelo mercado de trabalho E muitas vezes, mesmo quando conseguem conquistar um cargo, elas ainda ganham menos do que outras mulheres brancas e menos do que os homens. E raramente elas conseguem ocupar lugares de poder”, explica a especialista.
Segundo dados da PNADC/IBGE, desde o início de 2018, as mulheres pretas são o grupo mais afetado pelo desemprego. No primeiro trimestre de 2021 foram registradas 4,1 milhões de mulheres negras desempregadas, isso é o dobro do número de homens brancos desempregados.
Enquanto na indústria cinematográfica, um levantamento divulgado pelo Instituto de Cinema, de 100 filmes norte-americanos, de maior bilheteria, lançados em 2018, apenas 8% foram dirigidos por mulheres e somente 10% tiveram roteiristas femininas. Esses números se tornam ainda mais discrepantes, pois eles não consideram, raça, sexualidade ou algum tipo de deficiência dessas mulheres.
A importância da representatividade para as crianças
Ao mesmo tempo em que a internet ficou repleta de mensagens de ódio e racismo dirigido a Halle Bailey e ao novo live-action da Disney, vídeos emocionantes de crianças pretas reagindo ao trailer da Pequena Sereia começaram a surgir. Neles, as crianças demonstram alegria e animação ao verem uma princesa parecida com elas.
A pedagoga e escritora do livro infantil “Qual é a sua forma?”, Liliane Mesquita, alerta sobre a importância da representatividade na infância. Pois esses personagens lúdicos ajudam no desenvolvimento da criança.
“As crianças, através da imaginação, criam uma relação com os personagens, que as ajudam na construção e no desenvolvimento de valores, na sua formação cultural, intelectual, criativa e afetiva. Os produtos culturais devem oferecer personagens plurais, ou seja, de diferentes gêneros, etnias, culturas, crenças e biotipos, pois quando uma criança se vê representada em um personagem importante e de representatividade positiva, é encorajada a perceber que o seu lugar na sociedade não é limitado pela sua cor, por exemplo, e que podem sim lutar para ocupar o lugar que sonhar e desejar”, explica a autora.
Além da criança se sentir representada, a pedagoga também aponta ser fundamental expor as crianças a diferentes pessoas e culturas, para se criar um senso de pluralidade e respeito desde a tenra idade.
“É na infância o ápice da aprendizagem, por isso devemos estimular desde cedo o respeito à diversidade e a uma percepção mais real do mundo, pois a pluralidade faz parte do ser humano. Afinal, todos somos diferentes e isso não nos faz mais ou menos importante do que ninguém”, argumenta Liliane.
Por outro lado, a falta de representatividade causa efeitos negativos nas crianças. Liliane evidencia dois problemas causados pela falta de representatividade, o primeiro é essa pessoa se tornar um adulto carregado de preconceito, que tem dificuldade para lidar com o diferente. E o segundo são as crianças, que não se vêem representadas, acharem que os espaços de destaque não são adequados para elas.
“Tudo aquilo que as crianças têm acesso vira referência e auxilia na construção de suas próprias ideias de mundo. Sendo assim, se uma criança assiste produtos culturais que não prestigiam a diversidade e trazem um padrão único, específico e limitado, e sem ter a intervenção de um adulto, ela pode tomar aquilo como um referencial”, diz a pedagoga.
“Além disso, a criança também pode associar que existem lugares que não são para ela, como, por exemplo, uma experiência profissional que vivi, que inspirou o livro: ‘Onde é o lugar de Dandara?’. Uma vez eu convidei uma aluna para ser a princesa de uma peça teatral. Ela disse que não poderia, porque é preta e não existem princesas de sua cor. Respondi que ela era a princesa mais linda de todas e eu a escolheria mil vezes, que o seu lugar é onde estão os seus sonhos e que jamais pode ser limitado por sua cor. Chorando, ela respondeu que nunca imaginou receber tal convite, mas sim uma aluna branca”, relembra a escritora.
Em concordância com a pedagoga Liliane Mesquita, a antropóloga Luciana, também enfatiza a importância da representatividade na vida das crianças e questiona a revolta de muito grupos da internet por um filme infantil.
“De onde é que vem tanto ódio? Essas pessoas já pararam para pensar em como elas foram educadas? Em como elas foram ensinadas a se relacionar com o outro, com aquele que é diferente. Essas pessoas viram os vídeos das meninas, das crianças negras, ao verem do trailer da Pequena Sereia? Quando elas olham, elas ficam emocionadas e a primeira coisa que muitas delas falam, é ‘a pele dela é igual à minha’, ‘olha como ela é linda, ela se parece comigo’. Essas pessoas não têm noção da importância disso na vida de uma criança… No entanto, o meu questionamento é porque a cada três minutos, quando um jovem negro morre, essa revolta não é gerada? É sempre um silêncio ensurdecedor…”, questiona a antropóloga.
Fonte: IG Mulher