DA ECYCLE
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A bióloga Maíra Benchimol estranhou quando os mutuns-de-bico-amarelo (Crax alector) não foram mais registrados por suas câmeras camufladas na mata. Os pássaros negros, de cerca de 80 centímetros (cm) de altura, sempre apareciam nas imagens das armadilhas fotográficas montadas na pequena ilha de Xibé, uma das 3.546 que se formaram com a construção da usina hidrelétrica de Balbina, no coração do Amazonas, no final da década de 1980. O sumiço dos mutuns coincidiu com o registro de uma onça-pintada vagando pelo mesmo lugar. “Suspeitamos que a onça comeu todos”, observa Benchimol, da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc) em Ilhéus, na Bahia. Mutuns não costumam ser as presas favoritas das onças, que preferem bichos maiores.
As relações entre predadores e suas presas formam teias alimentares, que parecem mudar e se tornar disfuncionais – principalmente em fragmentos de floresta amazônica com menos de 100 hectares (ha), como é o caso da ilhota de Xibé, que tem 1,4 ha. É o que propõe a análise das potenciais interações alimentares – quem come quem – entre mamíferos e aves terrestres que vivem em 37 ilhas de Balbina. O estudo, que tem Benchimol como coautora, foi publicado em janeiro de 2023 na revista Current Biology. Entre os 27 bichos observados estão também onças-pardas (Puma concolor), jaguatiricas (Leopardus pardalis), antas (Tapirus terrestris), queixadas (Tayassu pecari), tatus-galinha (Dasypus novemcinctus) e cutias (Dasyprocta leporina).
O estudo indica que o tamanho da floresta pode ser determinante para que as redes ecológicas se sustentem. “Em ilhas com menos de 100 ha, houve uma quebra brusca nas teias alimentares, que se tornam simplificadas porque a maioria das espécies não consegue manter suas funções. Em algumas ilhas pequenas os predadores não encontram mais comida e, em outras, as presas podem proliferar”, diz o ecólogo Mathias Pires, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que conduziu o estudo ao lado de outros pesquisadores brasileiros do Instituto Juruá, de Manaus, Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia, da Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos, e da Universidade de East Anglia, na Inglaterra.
Segundo o ecólogo, a diminuição nas interações pode ocorrer porque algumas espécies já não existem mais naquele local ou restaram poucos representantes nas ilhas, o que diminui a chance de que os animais que poderiam interagir se encontrem. As redes de interação foram projetadas por meio de modelagem matemática que leva em conta o tamanho dos animais e sua dieta. Para isso, os pesquisadores usaram como base uma estimativa do número de animais e de espécies que havia em cada uma das ilhas visitadas por Benchimol entre 2011 e 2012, durante seu doutorado, e de três áreas de floresta contínua que não foram alagadas pelo reservatório de Balbina e ficam às suas margens. As áreas tinham entre 0,8 ha e 1,6 mil ha, com pelo menos 1 quilômetro (km) de distância entre si.
Cenários disfuncionais
Nas ilhas com menos de 100 ha, o cardápio dos predadores era menos variado. Eles tinham, em média, menos de cinco tipos de presas em potencial para comer, ao passo que esse número subiu para 10 em áreas maiores. Já os considerados presas – como antas, cutias e queixadas – tinham, em média, três a quatro tipos de animais capazes de comê-los nas ilhas maiores, mas apenas um ou nenhum predador nas menores.
É o caso de algumas ilhas que estavam tomadas por tatus-galinha ou outras em que as cutias dominavam a paisagem. Estas últimas, roedores marrons de cerca de 50 cm que comem frutas e sementes, têm o hábito de carregá-las por longas distâncias e enterrá-las para consumir depois. “As cutias são fundamentais para espalhar sementes pela mata, mas, sem predadores, elas podem proliferar e comer sementes em excesso”, observa Benchimol.
Segundo o ecólogo Pietro Maruyama, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que não participou do estudo, isso poderia levar a um efeito cascata. “Se as cutias comerem mais sementes do que já vinham comendo, algumas plantas poderiam diminuir muito ou serem extintas dessa ilha. Por consequência, outras espécies de animais que dependem delas seriam prejudicadas”, observa. Em 2022, Maruyama participou de um estudo que indicou que as mudanças climáticas poderiam levar à extinção de espécies de beija-flores brasileiros, o que também poderia iniciar um efeito cascata em outras aves e plantas.
Há, ainda, a possibilidade de que predadores como as onças-pintadas e pardas, que são boas nadadoras, cheguem nessas ilhas em busca de alimento e devorem todos os representantes de uma espécie, como pode ter acontecido no caso dos mutuns na ilha de Xibé. “Enquanto nas ilhas grandes as teias alimentares têm uma estrutura parecida, mais estável, nas menores os cenários são muito variáveis e essas teias são disfuncionais”, observa Pires.
No arquipélago artificial, apenas 5% das ilhas são maiores do que 100 ha e mais da metade tem menos de 10 ha. Segundo os pesquisadores, é provável que mais extinções locais ocorram, como já aconteceu com as queixadas em ilhas médias (com menos de mil ha e mais de 100 ha) e onças-pintadas e pardas em algumas ilhas pequenas, como já indicou um artigo de abril de 2015 publicado na revista Biological Conservation, do qual Benchimol e o ecólogo Carlos Peres, da Universidade de East Anglia, são autores. Peres também participou da análise recente.
O risco da fragmentação
As ilhas de Balbina, antes topos de morro que abrigavam uma floresta contínua, são bons modelos para entender os processos de fragmentação da Amazônia, segundo Maruyama. “Além da construção de grandes hidrelétricas, é possível pensar nas consequências para redes ecológicas de lugares divididos e desmatados para a criação de gado, de plantações ou para a construção de estradas que atendem a mineração”, observa. Muito provavelmente, interações vitais entre animais e plantas serão prejudicadas levando à perda de biodiversidade.
“Os dados reforçam que, com a fragmentação, a dinâmica ecológica deve se romper e não se sabe se os animais e a vegetação vão se manter por muito tempo”, sugere Pires. Até novembro de 2022, cerca de 20% da mata nativa amazônica brasileira tinha sido desmatada, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Nosso medo é de que a Amazônia seja a nova Mata Atlântica”, diz o pesquisador da Unicamp. Em 2019, restava apenas entre 10 e 20% desse bioma, segundo levantamento da Fundação SOS Mata Atlântica e do Inpe.