ROBERTA BORGES
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Responsáveis pelo transporte de praticamente tudo o que produzimos e consumimos no Brasil, os caminhoneiros obtiveram uma importante vitória no Supremo Tribunal Federal (STF), pouco tempo antes da Corte iniciar seu recesso. Por 8 votos a 3, os ministros declararam a inconstitucionalidade de alguns dispositivos da Lei dos Caminhoneiros (13.103/2015), que flexibilizavam uma série de direitos trabalhistas destes profissionais conquistados com a lei que regulamentou a profissão de motorista (12.619/2012).
Em primeiro lugar, é preciso termos claro em nossas mentes que é falsa a premissa de que haja uma dicotomia entre a situação econômica das empresas e a saúde do trabalhador. Estes dois aspectos podem e devem conviver em harmonia para o desenvolvimento pleno de nossa sociedade. Não é certo que haja uma evolução da condição de vida das pessoas, possível com o desenvolvimento econômico das empresas, às custas da saúde, física e mental, dos trabalhadores em geral.
Com isso em mente, fica bem mais fácil compreender para além da legislação os motivos que levaram a Suprema Corte a vetar os dispositivos contidos na Lei dos Caminhoneiros. O primeiro deles trata da jornada de trabalho dos caminhoneiros. A lei de 2015 retirou deste período o tempo que os motoristas ficam parados à espera de carga ou descarga dos produtos transportados ou aguardando eventuais fiscalizações em barreiras fiscais e alfandegárias, portanto, este tempo de espera não era considerado para o cálculo da jornada diária dos motoristas. Em compensação, eles passaram a receber por estes períodos de forma indenizada o equivalente a 30% do salário-hora normal.
Do ponto de vista legal, como determinado pela maioria dos ministros do STF, o dispositivo fere a Constituição porque causa um prejuízo direto ao empregado. Do ponto de vista prático, não parece razoável que estes longos períodos, que em alguns casos pode perdurar por vários dias, não sejam compreendidos e remunerados como efetiva jornada de trabalho destes motoristas. E isso fica ainda mais claro pelo fato de que a lei questionada no STF previa que, mesmo sem ser remunerado, o motorista deveria fazer as movimentações necessárias no veículo durante a espera.
Outro ponto afetado pela decisão trata do descanso entre as jornadas, que deverá ser de 11 horas, ininterruptas, com o veículo parado. Embora pareça óbvio, assim como os demais trabalhadores, os motoristas precisam de um descanso que seja reparador, do ponto de vista físico e mental. Quem já viajou pelas estradas do nosso país sabe das condições das rodovias, a grande maioria irregulares, ruins ou péssimas, e o quanto de esforço, sobretudo mental, é necessário aos condutores de veículos leves ou pesados por elas.
Do mesmo modo, o descanso semanal remunerado não poderá ser fracionado ou acumulado, como permitido pela lei de 2015. Esta é outra decisão muito acertada dos ministros, uma vez que este descanso não se dá por mero capricho do legislador, mas sim por uma necessidade biológica, que envolve a parte física, e mental, uma vez que é este o período em que os motoristas, que passam muito tempo longe de suas casas, possuem para o convívio com suas famílias e amigos.
A preocupação agora está centrada na modulação desta decisão do STF, que não pode fazer valer a expressão comum em nosso país de que “no Brasil, até o passado é incerto”. Se por um lado as empresas cumpriram a legislação vigente durante o lapso entre a publicação da Lei dos Caminhoneiros e a decisão do Supremo, os motoristas sofreram todos esses anos os danos advindos da legislação inconstitucional. Portanto, a modulação dos efeitos desta decisão do STF é extremamente importante e necessária para a segurança jurídica e pacificação do tema.
Além disso, a modulação é desafiadora a todos os envolvidos, exigindo toda cautela para o equilíbrio nas relações, pois na medida em que as transportadoras não podem ser penalizadas com a criação de um passivo trabalhista enorme não provisionado, que pode ser gerado com um efeito retroativo da inconstitucionalidade, os motoristas precisam, em alguma medida, compensar o passado lesivo. É preciso olhar para este tema com seriedade e sabedoria na busca de soluções aos trabalhadores e que paralelamente sejam sustentáveis aos empresários.
O papel dos transportadores na economia brasileira é fundamental. Se havia alguma dúvida disso, ela se dissipou em 2018, quando houve uma paralisação de 11 dias que gerou escassez de produtos, forte alta da inflação e queda no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro naquele ano, um prejuízo estimado à época em mais de R$ 15 bilhões. Por isso, é preciso que haja dispositivos legais que assegurem o reconhecimento ao papel desenvolvido por eles na nossa sociedade, o que foi ratificado com esta decisão do STF.
*Roberta Borges é advogada trabalhista há 19 anos, conselheira estadual na OAB seccional de MT e membro consultora da Comissão Especial de Direito do Trabalho do Conselho Federal da OAB.