Em meus dedos é presente a advertência de François Poulain de La Barre: “Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a um tempo, juiz e parte.”
Mas preciso ousar, no sentido pleno desta palavra.
Pode haver uma forma mais expressiva de desamor do que considerar uma pessoa uma coisa? Lamentavelmente, é isso que acontece nove, entre dez vezes, na violência de gênero no âmbito doméstico, familiar e na relação íntima de afeto.
Sim! A humanidade, ainda, é masculina e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo, capaz de dar a si a própria lei, dona do seu próprio destino. Segue o desafio de “ser pessoa” e luta, todos os dias, contra o sequestro de sua subjetividade.
As dores são muitas em ser mulher que quer amar.
A Maria afirma que não sente seu corpo seguro em nenhum lugar: como sentar, como andar, que roupa colocar, como proteger seu corpo das mãos, dos olhos, das facas, dos cintos, do fogo, da água quente, das armas de fogo;
A Maria não quer mais ser vista, esconde-se: do olhar dele que a julga, dos outros que a invade, do dele que a censura e reprova, do olhar que a diminui, a violenta, que diz quem ela é ou que diz que ela não é;
Maria quer “ser dela”: não quer ser dele, da voz dele, do que ele diz que ela é, de modo algum ser devassada quando anda pelas ruas, se defendendo dos olhares, das vozes, das atitudes e das mãos dos estranhos;
Maria não quer ser mais violentada com tapas, palavras, gestos, olhares, pratos, móveis, facões, fogo e revólver: por não dar a senha do celular, por não lavar a roupa ou não fazer a jantar, porque teve que levar o filho ao médico, por não estar pronto o almoço, por não concordar, pela cama mal feita, por não ouvir, por não olhar, por não sentir;
Maria não quer mais sentir medo: dos professores homens, dos médicos homens, dos chefes homens. Dos tios e dos primos. Dos padrastos e do pai. E dele…que, sobretudo, não deixa ela ser. É sério, “há pessoas que nos roubam e há pessoas que nos devolvem”.
Maria não quer mais ser “pessoa que não é”: porque impõe que roupa ela deve vestir, como ela deve se portar, o que ela deve fazer, senão ela é “errada” – por ter escolhido o lugar errado, a hora errada, a roupa errada, o cara errado; senão é “louca”, senão é “mal-amada”.
Já são livres, mas ainda não, diz o poeta. É que a conquista da liberdade se dá no mesmo decurso do “tornar-se pessoa”. A violência ameaça a liberdade, é golpe forte no ser. Ora, o ser humano é essencialmente livre, é fim em si mesmo.
Mas as Marias sabem que a vida humana é travessia. Somos êxodos contínuos; enquanto estivermos vivos seremos convidados à mudança. E como um grito de liberdade já cantam:
Ela desatinou, desatou nós (…) Eu não me vejo na palavra Fêmea: alvo de caça, conformada vítima.
Prefiro queimar o mapa, traçar de novo a estrada, ver cores nas cinzas e a vida reinventar.
E um homem não me define, minha casa não me define, minha carne não me define…eu sou meu próprio lar.
Emanuel Filartiga Escalante Ribeiro
Promotor de Justiça em Mato Grosso